domingo, 23 de dezembro de 2012

Mais do mesmo!








Salvador, 23 de dezembro de 2012




A Avenida Anhanguera é uma das principais vias públicas de Goiânia. É extensa e parece idealizada para ser a mais importante via de comércio central da capital de Goiás. Sua implantação foi realizada a partir da importante e já existente rodovia federal - BR 060, que atravessa a cidade de leste a oeste. Inseridos no eixo desta avenida estão corredores exclusivos de ônibus que facilitam o escoamento dos usuários de transporte público. Em dias úteis, a movimentação de veículos e pessoas ali é, naturalmente, intensa e conflitante.

Já passava das 19 horas da quarta-feira, dia 13 de dezembro passado, quando eu resolvi caminhar por esta avenida, saindo do shopping Bananas onde jantei, em retorno ao hotel no setor oeste, onde me hospedei. O fato de Goiás encontrar-se em horário de verão e o céu ainda claro permitiu que eu realizasse uma leitura urbana no trajeto em que percorria e apropriar-me um pouco do espaço construído ao redor. Ali, os raios solares remanescentes incidiam  sobre os prédios e casarões, realçando os tons e texturas existentes nas fachadas  com a amena claridade do final de tarde dos últimos dias de primavera. O término do expediente de algumas lojas já fechadas contrapunha com muitas outras ainda em funcionamento. Isto, de algum modo, proporcionava uma atípica atmosfera de centro comercial e financeiro – com alguns clientes em busca de suas últimas compras e outros ávidos para fugir do território deserto que em poucos instantes se transformaria o local. Este cenário dava uma curiosa conotação meio a meio - comércio e feriado – àquela zona de negócios.

Eis que exatamente na intercessão dessa via com a Avenida Tocantins surge à minha frente, imponente e estiloso o prédio em arquitetura art déco que abriga o Teatro Goiânia. Por alguns minutos fiquei a observar a sua interessante volumetria que nos remonta a um enorme transatlântico (inerte num porto!). Ative-me às suas janelas em escotilhas e a sua indecifrável cor - original de quando o prédio foi erguido em 1942 - resgatada num trabalho minucioso de restauro que durou cerca de dois anos.

Curiosamente, às portas do prédio via-se um público eclético formado por jovens aparentemente universitários, casais bem vestidos de meia idade, idosos sorridentes e artistas de várias tribos formavam grupos distintos que se distraiam em pequenos burburinhos cuja aglomeração coletiva transformava o descontraído bate papo num ruído intenso. Aquela perspectiva – do local e das pessoas - de algum modo me remetia à lembrança de algo que pareceu distante na capital em que moro: o público presente ia assistir a um drama teatral.

Atravessei a rua e fui me informar. Às oito horas iniciaria a montagem “O Anjo Negro” com grande e destacado elenco, cuja imprensa local – fui saber dias depois – vinha rasgando elogios ao trabalho.  O espetáculo é baseado na obra escrita por Nelson Rodrigues em 1946.  O texto discute o preconceito racial e os conflitos domésticos. O ator principal incorpora um médico negro de grande prestígio que não aceita sua condição racial e é casado com uma mulher branca com quem tenta ter filhos.

Ao preço módico de “cinco reais” adentrei o teatro com a mesma expectativa de quem faz turismo de passeio e visita ambientes incluídos no roteiro de viagens. Meu principal objetivo era ver o interior do tablado e “de quebra” assistir a um enredo do pornográfico autor. Minha grata surpresa se deu mais pelo espetáculo do que pela infraestrutura em si. Talvez o fato de limitar-me a conhecer apenas a área de plateia e do palco tenha contido meu entusiasmo com a arquitetura. Durante as quase duas horas de duração do evento, me entreti com os personagens, com o talento dos jovens atores e com o cenário criativo, apesar de simples e notadamente barato.  

Evidente que comparei com a situação de Salvador. E esta comparação me levou à inveja. A cena teatral em nossa cidade na maioria das vezes em que faz sucesso traz como tema o besteirol e/ou o texto de linguagem vulgar. Por que é difícil uma montagem com elenco baiano fazer sucesso com um texto dramático? Por que quase todos nossos estrondosos sucessos teatrais “exportados” para os outros estados são comédias de fácil entendimento? Talvez a minha incômoda resposta para isto nos leve a um debate intenso cujos “especialistas” da área se inclinarão à oposição. Creio que este é mais um legado deixado pelos nossos precários investimentos em educação. O que isto tem a ver?

Educação sim, meus amigos! Pois é. Um texto de mediana compreensão, explorado em palavrões e gírias soteropolitanas em que o elenco interage e ridiculariza pessoas do público é bem mais fadado ao sucesso - aqui na Bahia - do que um diálogo encenado e baseado nas obras de Shakespeare ou Dostoiévski.

Semana passada, o prefeito eleito de Salvador – ACM Neto – anunciou a criação da Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Turismo e Cultura. Existe uma movimentação de setores culturais  da nossa cidade que são exponencialmente contra a fusão das pastas de turismo e cultura. Exatamente porque entendem, e é bastante salutar este pensamento, que as nossas políticas de desenvolvimento cultural estejam amealhadas a se transformar num balcão mercadológico que vise apenas lotar nossos hotéis e restaurantes com turistas ávidos pelos eventos de natureza carnavalesca que acontecem em Salvador durante todo o ano. E obviamente as tantas outras produções dos movimentos culturais da cidade escoem pelo ralo.

Talvez seja por isso mesmo que muitos intelectuais e artistas – no sentido mais pleno da palavra: atores, cineastas, pintores, escritores, dançarinos e tantos outros – tenham reagido com veemência ao anúncio de um segundo carnaval em Salvador no ano de 2014 e o próximo alcaide ladeado de cantores conhecidos da axé-music, mas que são - assim como ele próprio, ACM Neto - empresários do carnaval soteropolitano. Espero que não seja mais investimentos no mesmo! ou para os mesmos!

É cedo para traçar quais rumos, em termos culturais, a cidade de Salvador deverá seguir nos próximos quatro anos, pois  ainda assombra nos cidadãos soteropolitanos o desmando, a ausência e a flagrante incompetência do atual gestor da cidade, cujo dia de saída da prefeitura  – dia primeiro de janeiro de 2013 – é mais esperado e provavelmente será mais comemorado que o próprio ano novo (pelo menos para os que moram aqui e sofrem com os percalços de uma metrópole completamente abandonada). Naturalmente, espera-se que ACM Neto redobre sua atenção para os setores culturais da cidade (os ativos e os hibernados) e convirja para esta pasta o entusiasmo que lhe é necessário.

Talvez a instalação de um Conselho Municipal de Cultura forte e atuante, cuja participação de membros indicados e eleitos pela sociedade civil organizada possa dar conta de contribuir com a tarefa de soerguer este esquecido setor. Goiânia, nem de longe, pode ser comparada à nossa cidade em termos de tradição na garimpagem de destacados artistas locais ou expressivos movimentos culturais, mas ensina a Salvador (com maestria) o trato que deve ser dado aos seus patrimônios.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O pagador de promessas!









Salvador, 04 de dezembro de 2012




O soteropolitano ou mesmo o turista desavisado que sai do pelourinho e sobe a ladeira do Carmo em direção ao Bairro do Santo Antônio não se dá conta da importância cultural das escadarias à sua esquerda que conduzem até a estreitíssima rua do Passo, onde está frontalmente localizada a também esquecida Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo. Fechada desde 2008 por conta da péssima conservação física por qual passa o valoroso monumento religioso e pela real deterioração dos bens móveis que integram o conjunto.

Aquela igreja é um belíssimo exemplar de arquitetura barroca erguida aqui na Bahia, cuja construção data de 1737. Suas fachadas em estilo rococó sãos expressivas. A planta remonta à solução de corredores laterais disposto por tribunas e sacristia transversal, iguais a outras igrejas baianas da mesma época. Apenas isso, por si só, já seria suficiente pra torná-la uma preciosidade a ser visitada em virtude do seu mérito arquitetônico. Mas, as tais escadarias e a própria igreja ficaram internacionalmente famosas por outro motivo: foi cenário do premiado filme nacional, “O pagador de promessas” – película de Anselmo Duarte, rodado no início da década de sessenta e que, em 1962, deu ao Brasil a sua única Palma de Ouro em Cannes.

Também pode ser surpresa, a um desavisado morador da cidade ou um visitante pouco atento, que nestas mesmas escadarias acontece há quase dez anos, todas as terças-feiras, um show gratuito iniciado às oito da noite e findado por volta das dez. Trata-se do ensaio permanente do cantor e compositor Gerônimo Santana e da Banda Mont Serrat.

Gerônimo é, atualmente, um dos principais vultos da musicalidade baiana. Sua música de maior sucesso, escrita em parceria com Vevé Calazans – É d’Oxum – atravessou os oceanos e é conhecida em diversos países. Sua letra revista por intérpretes famosos do cenário musical brasileiro se reporta ao povo da capital baiana, como se todos nós, soteropolitanos, irradiássemos magia e fôssemos sacerdotes da vaidosa Orixá, que, de acordo com a mística, comanda as águas doces do Universo. Esta música, composta em 1984 e tocada na minissérie da Rede Globo, Tenda dos Milagres, acabou por se tornar quase um hino baiano.

Além da mais famosa música, há no repertório do compositor tantas outras com letras tão intensas e com melodias absolutamente bem resolvidas. Sua compilação musical é imensa e farta, mas não corresponde, de maneira alguma, ao grau de publicidade de sua obra. Gerônimo não é tocado nas rádios baianas e não aparece na imprensa local. Para muitas pessoas daqui é um ilustre desconhecido.

Talvez, por isso mesmo, tenha iniciado com financiamento próprio, no ano de 2003, o "Projeto Gerônimo, Pagador de Promessas", que quase sempre conta com a participação de artistas amigos e convidados. E é ali, exatamente nos pés da escadaria, que o artista arma seu pequeno palco, transformando os pisos posteriores dos degraus numa espécie de arquibancada cuja ascensão possibilita distribuir a plateia de maneira escalonada. Esta conformação aproxima o público em alguns lances e os descola nos patamares existentes. Este improviso é, surpreendentemente, bacana. O show é vibrante! Todos, aparentemente, se divertem: alguns sentados, outros de pé!

Gerônimo nasceu no ano de 1953, em uma das ilhas pertencentes a Salvador - Bom Jesus dos Passos. Naquele território bucólico iniciou e aprimorou sua paixão pela música, aprendendo teoria musical e tocando trombone na Filarmônica. Seu talento o levou a tocar outros instrumentos de sopro, percussivos e de corda, como o violão. Sua identificação com o local de nascimento o aproximou da temática do mar. E a sua crença religiosa o fez expoente de devotas homenagens aos conhecidos Orixás.

Há também desafios notáveis que o próprio artista decide encampar. Um exemplo disso foi musicar o abecedário – uma provocação inconteste – e que, mesmo assim, possibilitou um incrível arranjo e uma batida suave. Há espaço também para, em suas letras, protestar sobre o medo que a nossa polícia provoca nos cidadãos (música: Cidade da Pomba), ou a falta de proteção ao povo sofrido de Salvador, que reside nas encostas, cujos governos  incompetentes o considera lixo humano (música: Mameto Calunga).

Em tese, a escolha do dia de terça-feira para a realização do projeto não tem exatamente uma razão específica. Foi escolhido ao acaso, mas tornou-se um dos raros momentos em que moradores e turistas daqui de Salvador tem a oportunidade de adentrar numa performance artística cujos sons primam por harmonias criativas, melodias agradáveis e ritmos dinâmicos. Enfim, ouve-se uma produção de boa qualidade. Evidente que esta mostra, em se tratando de arte, pode não agradar a todos! Entretanto, tenho a convicção de que satisfaz a maioria.

Cerca de dois meses atrás, levei uma turista de Buenos Aires, Valéria Marzullo, para o show nas escadarias. Seu encantamento com o ambiente era, de todo modo, bastante visível. Notei que, aos primeiros acordes tocados, a música lhe contagiou. A surpresa ficou por conta do seu intento em “bailar”. Durante as duas horas do evento, mergulhamos num universo efervescente com a atmosfera da cultura baiana de outrora. Saímos convencidos de que aquela proposição musical era única. Em nossos países, por exemplo, não havia nada para efeito de comparação. Nem em termos de concepção de um espetáculo democrático, nem em termos de imposição de músicas desconhecida das rádios, mas entoadas maciçamente pelo coro presente.

Junto com o cantor, compositor e trombonista tocam mais de uma dezena de músicos daqui da Bahia, que mesmo sem a garantia do retorno financeiro acompanham o líder em todas as suas incursões. É um trabalho praticamente voluntário. A moeda compensatória parece ser o prazer de fazer música e movimentar a noite de terça-feira de milhares de pessoas. Seu público é cativo e que, em sua maioria, conhece as letras por inteiro. Não tenho dúvidas de que o projeto merece um patrocínio público ou privado pelo seu comprometimento na difusão da cultura baiana.

Na terça passada estive mais uma vez no show - é muito comum me virem por lá! - dia em que registrei com o meu celular a fotografia acima e o exato momento em que fiz a reflexão abaixo: enquanto o pensamento do poder público acerca dos incentivos e valorização às atividades culturais em nosso estado não priorizar critérios como a nossa própria história e os patrimônios – físico, artístico e cultural - oriundo dela, o show de Gerônimo está fadado a entrar no mesmo processo de declínio que experimenta a extraordinária igreja que vem se arruinando bem à sua frente.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

O paraíso pessoense











Salvador, 27 de novembro de 2012



Depois de ter saído do meu apartamento às seis da manhã da segunda-feira, dia 19 último, em direção ao aeroporto Luis Eduardo Magalhães com destino à João Pessoa, entrei numa aeronave da companhia Avianca. Minha conexão era em Brasília. Descobri dois dias antes que a companhia aérea Gol possuía voo direto para capital paraibana, mas mesmo assim, fui adesivado igualzinho a minha mala e embarquei numa jornada cujas cidades são geograficamente próximas, porém o tempo de duração do itinerário  é comparado a voo internacional. Duas horas até Brasília, saindo de uma capital nordestina,  e depois mais duas horas e meia voltando para outra capital da mesma região. Somem-se a isso os traslados e tempos de espera nos aeroportos e lá se foram quase dez preciosas horas de minha vida entre Salvador e João Pessoa.

Era por volta das dezesseis horas quando comecei a preencher o formulário de check-in do Marinas Flat Hotel, em Tambaú. Apesar da minha chateação com o tempo perdido, fiz uma fotografia do hall do hotel que me hospedei (estampada neste artigo) em direção ao exuberante mar, cuja beleza da cena acabou traduzindo um pouco das impressões que acabaria tendo com a cidade.

O Aeroporto Internacional Presidente Castro Pinto fica localizado no município de Bayeux, distante aproximadamente quatorze quilômetros do centro de João Pessoa e foi recentemente reformado para elevar a sua capacidade de passageiros. Durante este trajeto, e dentro de um micro-ônibus, fui atentando para as características das ruas na medida em que deixava o município vizinho para traz e me aproximava da cidade mais verde do Brasil. De acordo com a ONU, ela perde no mundo apenas pra Paris neste quesito. 

Fui à capital paraibana para participar de um Fórum que faço parte desde o ano de 2009. Junto comigo estavam outros dirigentes que desembarcaram de diversos estados brasileiros quase no mesmo horário que eu. No saguão do aeroporto, fomos recepcionados calorosamente por funcionários da instituição que promoveu o evento. Interrompi uma pessoa do local.

- Aqui tem muitos congestionamentos? – Perguntei com a curiosidade típica de quem se interessou em morar na cidade.

- Nenhum! – Disse-me com entusiasmo a cicerone.

Apesar desta convicta resposta  e pra azar nosso, nos deparamos com um engarrafamento atípico na periferia da cidade que atrasou sobremaneira nossa chegada ao hotel. Mesmo assim, não pude deixar de apreciar o ar bucólico e a aparente tranquilidade das alamedas pelas quais trafegávamos. 

Também conhecida como “cidade pomar”, em virtude da enorme variedade de árvores frutíferas que ornamentam o município, João Pessoa proporciona aos moradores uma qualidade de vida de dar inveja a pessoas que, como eu, tem a infelicidade de dedicar duas horas diárias de sua vida a um trânsito caótico e estressante das grandes metrópoles. 

Mesmo tendo um forte apelo à preservação do verde que confere à cidade um título reconhecido pelas Nações Unidas, está nas belíssimas praias urbanas aquilo que considero um diferencial turístico. Cerca de trinta quilômetros de águas marinhas, em diversos tons de azul, aparentemente despoluídas e com uma temperatura ideal para o banho – mesmo às seis da manhã e às seis da tarde, momentos em que eu, livre do compromisso de trabalho, atravessava a rua que separa o hotel - onde me hospedei e foi realizado o evento - e a Praia de Tambaú, para arriscar um mergulho solitário. A orla pessoense tem ainda vastos coqueirais e imensas falésias. Em uma de suas praias, Seixas, está situado o ponto extremo oriental das Américas. É onde o sol nasce primeiro no nosso continente.

O projeto de urbanização do litoral, para o trecho que vai de Seixos a Bessa, demonstra falhas, sobretudo de acessibilidade, pouco perceptíveis à turistas que ficam hipnotizados com a beleza local. O calçadão de mais de cinco metros de largura entre Cabo Branco ao sul e Manaíra ao norte, passando por Tambaú, sofre reduções consideráveis de largura nos seus extremos.  Obstáculos como postes, árvores, telefones públicos estão dispostos neste calçadão tornando-o uma tormenta aos portadores de necessidades especiais. Não existem sanitários públicos suficientes ao longo da orla – pelo menos eu não identifiquei. E a ciclovia existente é uma pista improvisada sobre a via asfaltada que contorna as praias. 

Apesar destes problemas de urbanização identificados, a generosidade da natureza para com a cidade é enorme. A beleza de sua paisagem é indiscutível e a atmosfera singela culmina num convite à moradia. Não tive notícias de violência urbana nos quatro dias que passei por lá. Coincidência ou não, a versão local do jornal afiliado da rede Globo, ao contrário da variante baiana, não dá ênfase à violência e nem ao futebol profissional. Talvez seja exatamente porque ambos sejam raridades na capital paraibana.

Fiz uma incursão pelo patrimônio histórico da cidade.  Este conjunto é considerado por técnicos e especialistas como um dos mais destacados do Brasil. Na cidade está erguida uma arquitetura Franciscana, formada pela igreja de São Francisco e Convento de Santo Antônio, que começou a ser construído no final do século XVI. Em outras partes da cidade há uma considerável quantidade de monumentos, prédios e igrejas que se destacam pela influência do barroco e sobrados coloridos de arquitetura eclética.

Até a madrugada de sexta, dia 23, quando retornei a Salvador, me diverti em bons bares e restaurantes e caminhei tranquilamente pela cidade, desbravando suas avenidas e quadras bem delineadas e típicas de um traço idealizado por urbanistas visionários. Alguém tratou de proteger a orla da invasão dos arranha-céus. Lá o código de obras municipal define um gabarito de altura que impede a construção de prédios com mais de seis pavimentos. Neste aspecto as areias da praia estão protegidas de serem sombreadas pelas projeções dos edifícios durante as tardes. Ainda bem, pois senão viríamos banhistas buscando uma estreita faixa ensolarada nas areias correspondente aos recuos entre os arranha-céus, que de quebra impediria a plena entrada das brisas marítimas para o miolo da cidade tal e qual acontece nas praias de Copacabana, no Rio e Boa Viagem, em Recife.

Neste aspecto, João Pessoa tem muito a ensinar às tantas outras capitais brasileiras de que sinônimo de viver bem não está nem um pouco relacionado à maciça ostentação das metrópoles desenvolvidas, e sim ao freio de arrumação que se dá à civilização quando se pode usufruir de pacatos paraísos como este. 


domingo, 18 de novembro de 2012

Somos todos búfalos !











Salvador, 18 de novembro de 2012



Depois de cinco anos voltei a usar aparelho ortodôntico. De modo algum foi por vaidade.  Foi necessidade. Acontece que o tratamento a que me submeti durante sete anos foi prejudicado em virtude da interposição noturna da minha própria língua contra as arcadas dentárias, desarrumando o alinhamento perfeito conseguido pelo meu dentista anterior. Agora, além deste tratamento odontológico, tenho que recorrer às sessões de fonoaudiologia para impedir a batalha noturna travada entre a língua e os dentes. Mas, tornei-me um paciente-paciente!

As dores incômodas provocadas pelas forças dos fios de aço recolocando os meus dentes no lugar são abstraídas em virtude da boa conversa que acontece durante o meu tratamento. Sempre há um bate papo dentro do consultório que costuma ser mais duradouro que as próprias intervenções ortodônticas.

Meu ortodontista, Alexandre Palmeira,  é um sujeito nascido em Remanso, sertão da Bahia. Como tantos outros nordestinos do interior, veio à capital para tornar-se doutor. Estudou em escolas tradicionais da capital baiana até ser aprovado no vestibular da Universidade Federal da Bahia. Formou-se em tempo mínimo e logo se aventurou como empreendedor. Deve ter em torno de quarenta e cinco anos, é casado e pai de uma filha. Instalou seu consultório bem pertinho do bairro que escolheu pra viver: Itaigara. Para ele, qualidade de vida é não enfrentar o caótico trânsito da metrópole diariamente.

Esta semana ele me surpreendeu com uma observação.

- Engraçado o povo de Salvador. Pensa diferente da população de Fortaleza, João Pessoa, Maceió e outras capitais nordestinas. Lá todo mundo adora morar defronte a Orla. Aqui a preferência e a valorização são por avenidas centrais engarrafadas. – Disse-me convicto e ao mesmo tempo me instigando a pensar sobre qual provável fenômeno provoca a divergência de opinião entre nós e as demais cidades litorâneas.  

- Ora, porque a Orla de Salvador é a mais maltratada do mundo. – respondi de bate pronto. Foi uma das respostas que me veio à cabeça naquele momento. O fato é que um conjunto de fatores impõe essa característica à moradia na nossa capital, mas, sua constatação me levou a pensar um pouco mais no assunto. Porque os apartamentos nas Praias de Iracema, Tambaú e Pajuçara são disputados e valem uma fortuna, enquanto que os da Praia da Barra em Salvador só se desvalorizam? Temos um monte de respostas, mas vamos começar por partes.

Primeiro temos que considerar que os adquirentes de imóveis tendem, em qualquer lugar do mundo, a seguir um comportamento idêntico. Tal e qual o efeito manada, existe, neste caso, uma enorme tendência de que devemos fazer ou acreditar em coisas por que outras pessoas fazem ou acreditam no mesmo. Aí a especulação imobiliária deita e rola! Não adianta supor que o seu pensamento crítico te fará escolher um novo bairro como moradia. A articulação engenhosa neste tipo de negócio lhe levará a uma habitação cujo local de implantação será exclusivamente definido por construtoras e incorporadoras ávidas para aumentar seus lucros. E, como búfalos aloprados, nós tenderemos a seguir o amigo, o colega de trabalho ou o familiar na compra do próximo apartamento dos nossos sonhos. Neste aspecto, não se trata de gostar ou não de morar na orla de Salvador e sim de onde são ofertados os imóveis magnificamente decorados cujos panfletos distribuídos em semáforos costumam exibir uma família graciosa e sorridente com o pai carregando um dos filhos nas costas e a mãe segurando outro pela mão. Agora reflita: aquela não é o padrão de família ideal?

Evidente que os maus tratos dados pelo poder público em determinados trechos da orla tem enorme parcela de responsabilidade pela fuga de investimentos privados. Pode-se até imaginar uma ação orquestrada cujo pano de fundo seja a real desvalorização de trechos do solo urbano de Salvador. A especulação imobiliária como atividade aguda do capitalismo possui uma capacidade brilhante de reinventar bairros, inovar na arquitetura, renovar territórios e convencer incautos, pois o pilar de sua sobrevivência é a satisfação do cidadão que tem dinheiro pra gastar. E porque então não se investe em empreendimentos na Orla, já que a maioria das pessoas prefere ver o mar das suas janelas e varandas?

A resposta é muito simples. O plano diretor de desenvolvimento urbano – PDDU - de Salvador possuía restrições de gabarito de altura que impedia que os ganhos dos investidores não fossem potencializados, já que o número de apartamentos num prédio de quinze ou vinte andares é bastante diferente de um edifício com quatro pavimentos. Note-se que em alguns trechos da orla como Armação e Patamares vem consolidando vários empreendimentos de alto padrão. Curiosamente, entre estes dois locais está constituída a faixa da orla soteropolitana flexibilizada em seu gabarito no recentíssimo PDDU, sancionado no governo João Henrique. Será que houve um, digamos assim, interesse público-privado na tal liberação do gabarito?

O melhor, para o mercado de imóveis, ainda está por vir. Minhas projeções dão conta de que a especulação ainda pretende vender muitos imóveis na Paralela e miolo de Salvador, até se chegar à exaustão. Só então, depois disso, este sistema convencerá maciçamente os atuais proprietários de que bom mesmo é viver na orla soteropolitana. Nossos gados com diplomas universitários e com grana pra gastar serão reconduzidos a novas pastagens, a partir das belíssimas peças publicitárias. Não amigo, não se sinta bobo! O jogo é pra valer e não é fácil escapar destas armadilhas.

Tenho um conhecido baiano que mora no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro, num apartamento de dois quartos com menos de setenta metros quadrados e com infraestrutura de lazer bem generosa, cujo valor mensal de aluguel e condomínio corresponde a quatro mil e setecentos reais. Laranjeiras é um bairro central, barulhento e de muito trânsito. É conhecido por abrigar o Palácio do Governo Estadual e a sede do Fluminense. Sua principal via começa no Largo do Machado e termina nas imediações do Túnel Rebouças. A especulação o convencionou um bairro de classe média e classe média alta. Quem conhece o Rio, sabe que do ponto de vista da geografia natural, ali não é exatamente um dos locais mais exuberantes da cidade. E porque o aluguel custa tão caro? Reflita novamente...

Talvez o descuido para com a orla de Salvador tenha exatamente este sentido. Convencer os atuais proprietários dos imóveis em ruínas ao longo da orla a vendê-los por preços desvalorizados, para que no mesmo lugar possa ser erguido um arranha-céu com fachadas estonteantes e varandas ostensivas. É óbvio que o sofrimento para ter o sorriso com meus dentes futuramente alinhados em nada combina com as gargalhadas satíricas da ganância especulativa.

domingo, 11 de novembro de 2012

Civismo











Salvador, 11 de novembro de 2012



O bairro do Canela, localizado na porção central da cidade de Salvador, é destacado pela especulação imobiliária como um bom local para se viver. Seus imóveis costumam ser bem valorizados. Em sua vizinhança estão os não menos nobres bairros da Graça, Vitória e Campo Grande. Ali, encontram-se equipamentos urbanos importantes. Têm-se escolas, faculdades, hospitais, clínicas, bancos, supermercados e edifícios residenciais instalados em seu miolo.

O distrito se iniciou nas primeiras décadas do século passado a partir do desmembramento de uma antiga propriedade rural chamada Roça do Canela, pertencente à tradicional família Pereira de Aguiar. Sua relevância na cidade ocorreu após a construção da casa do Barão do Sauípe e com a implantação do Colégio Nossa Senhora da Vitória - Marista. Atualmente o lugar registra a convivência de um público bastante heterogêneo, mas que, em sua maioria, é formado pela comunidade acadêmica e por muitos moradores idosos. Em se tratando de arquitetura, pode-se registrar também, a integração de antigos casarões com edifícios de feição contemporânea.

A Marechal Floriano é uma rua do Canela, com formato em “L”, que se inicia no conturbado cruzamento da Avenida Araújo Pinho com a Rua Augusto Viana e contorna um importante quarteirão do bairro, que abriga a maior parte dos equipamentos descritos. Esta via possui aproximadamente nove metros de largura, pouco mais de quinhentos metros de comprimento  e o tráfego de veículos se dá em mão única. Por estas circunstâncias, é muito comum as pessoas estacionarem seus automóveis nos dois lados da rua, os posicionando em paralelo com o fluxo central de veículos.  Evidente que o logradouro com esta configuração de ocupação não permite ultrapassagens.

Semana passada, ansioso para chegar a uma reunião de trabalho e trafegando pela rua descrita, deparei com uma situação incrível.  Um veículo dirigido bem vagarosamente à minha frente parou sem motivo aparente e começou um diálogo com um vendedor de uma das quatro barracas de frutas instaladas na rua. A princípio pensei tratar-se da busca de informações de localização, mas a minha surpresa tão imediata quanto a minha indignação, ficou por conta da constatação do real motivo do condutor ter obstruído a passagem de todos que seguiam na mesma direção: Dali do banco do carro, numa atitude inusitada, o motorista resolveu comprar dois abacaxis. Uma sensação de impotência e raiva tomou conta de mim. Como pode uma pessoa ser tão egoísta?

O civismo refere-se às atitudes e comportamentos que cotidianamente assumem os cidadãos. É baseado nas crenças e valores assumidos como determinantes para preservar a harmonia da sociedade e o bem estar de todos os integrantes dela. A obtenção de um elevado grau de civismo está diretamente vinculada uma boa educação.  O princípio básico para entender o termo é adotar a expressão: “não faça com o outro aquilo que não quer que faça contigo!”. Conhecer as leis, regras e prescrições de consenso coletivo é condição fundamental para que se possibilite uma convivência, digamos que, mais civilizada. É óbvio que o bom senso deve nortear as questões não convencionadas.

A nação brasileira, quando constituída em seu processo histórico de formação, foi marcada pelos conflitos estabelecidos em sua origem a partir do relacionamento entre invasores europeus, negros escravos e nativos indígenas. A miscigenação desses povos e o incremento de tantos outros em nosso território com suas crenças e tradições vêm, ao longo do tempo, contextualizando uma cultura diferenciada cujos valores e sua inversão, podem soar de forma contraditória para muitos brasileiros, mas absolutamente natural. Há que se enfatizar a enorme diferença entre o desacordo de pontos de vistas e a explícita desonestidade ou desvio de caráter de alguns.

Como posso criticar o barulho promovido pelos carros de som nas ruas, se eu patrocino festas em meu apartamento cuja altura do som atinge mais de noventa decibéis? Como posso protestar da sujeira da minha rua, se costumo descartar o lixo no terreno baldio da vizinhança? Atitudes que aparentemente não causam prejuízos diretamente a uma pessoa, mas que se assemelham a uma produção industrial. Ao se danificar alguns dos dentes de uma máquina de engrenagens, se torna impossível que o conjunto mecânico funcione perfeitamente. Assim é a nossa sociedade. Pequenas atitudes de desrespeito que impedem que convivamos ajustadamente.

Recentemente, aguardando impaciente e por vários minutos, estava na fila do supermercado. Logo atrás, o número de clientes aumentava enormemente. Mesmo assim, um cidadão aparentemente saudável e com vinte e poucos anos se aproximou de mim e falou quase inaudível:

- O senhor poderia me deixar passar à sua frente, com as minhas compras?

Em suas mãos uma garrafa de bebida alcoólica e dois litros de um energético vulgar. Visivelmente comemorava algo. Estava com pressa e me escolheu porque era o próximo a ser atendido no caixa. Respondi com um sonoro “hein!?”, que deve ter atingido os mesmos decibéis que enumerei.  Minha interjeição e dúvida, posta naquela única palavra e soada com o alto volume, explodia a minha repulsa latente diante da pergunta incômoda. E, além disso, permitia que todos os clientes que estavam depois de mim ouvissem exatamente a proposta indecorosa do sem vergonha. Ele ousou repetir um pouco mais alto e, eu respondi tranquilamente, de modo que os demais interessados me ouvissem:

- Por mim não há problema algum em você passar as suas compras, mas tenho que ter a autorização de cada um destes que está logo depois mim para permitir seu intento - Falei apontando para os clientes na fileira.

Em seguida me dirigi aos demais clientes e perguntei se eles permitiam a transação. Evidente que quase ocorre um linchamento com o sujeito, que saiu rapidamente dali me dizendo impropérios. Fui pra casa refletindo com a situação. Acho que fui cruel, mas agi por instinto e em defesa dos tais valores cívicos.

Ocorre que frequentei as aulas da disciplina “Educação Moral e Cívica” durante o meu ensino básico, que foi extinta dos currículos escolares. A metodologia das aulas, em tese, não se proporia a adestrar nem catequizar os indivíduos, mas sim, estimular o pensamento voltado aos valores éticos e morais. Que fique claro que a defesa à cadeira é, sobretudo, à reflexão do sujeito, não à imposição de valores individuais de quem ministra as aulas como princípio e método. Esta disciplina nos permitiu – a mim e aos meus colegas – instigar um pouco da busca pela cidadania ao qual todos têm direito.

Pelos cabelos grisalhos e a aparente idade do senhor que parou pra fazer compras interrompendo o trânsito no Canela, pode-se concluir que o mesmo andou cabulando muitas aulas de EMC no seu período ginasial e, sem dúvida alguma, é um cara de pau audacioso. 


domingo, 4 de novembro de 2012

Minha alucinação




Salvador, 04 de novembro de 2012



Plena noite de quarta-feira em Salvador, quando parei o carro frente ao semáforo. Durante o minuto e meio em que fiquei à espera do demorado sinal verde ao lado do hiperposto, no cruzamento da Avenida ACM, fiquei observando o vaivém das pessoas naquele trecho movimentado da cidade. Enquanto fitava atentamente seus percursos e as suas expressões faciais, o som do meu carro tocava “alucinação” de Belchior.  Inevitável a confrontação entre a letra contida na música - escrita há mais de quarenta anos - e o contexto atualíssimo com que me deparava naquele exato momento.

“Um preto, um pobre, um estudante e uma mulher sozinha (...)”, personagens descritos na canção, podiam ser vistos logo ali à minha frente.  Enquanto os acordes ainda ecoavam em meus ouvidos, fui surpreendido, ao olhar pelo retrovisor, por um garoto com pouco mais de nove anos de idade que exibia freneticamente seu “instrumento de trabalho”: rodinho limpa para-brisas. Disparou em direção ao vidro traseiro do meu carro e realizou uma limpeza em exatos vinte segundos, para em seguida se posicionar frente ao para-brisa dianteiro com o intuito de terminar a tarefa que iniciara sem a minha anuência e, logo em seguida, cobrar a taxa pela realização do serviço. Neste momento pude observar a criança em sua plenitude. Eram quase dez horas da noite e o pequeno trabalhador exibia uns trapos pelo corpo. A sua magreza e a visível falta de vitaminas em seu corpo lha dava curiosamente o mesmo tom cinzento com que Belchior descreve a epiderme das pessoas na melodia. O seu cansaço era visível e a exploração por alguém mais velho era muito óbvia.  

Nas redondezas daquele semáforo costumam se reunir outras tantas crianças com o mesmo perfil e com a intenção de arregimentar grana em troca do esguicho de uma água de aparência duvidosa e uso do rodo nos vidros dos automóveis. Não apenas crianças. Adolescentes e adultos usam a mesma estratégia. É uma mazela preocupante que precisa de urgente intervenção. Para além da tangência aos campos da injustiça social, educação, segurança pública e desemprego que demarca o problema desde a sua origem, está ali uma crueldade exposta aos olhos de qualquer cidadão, ante a presença do Estado que finge não enxergar este impiedoso ambiente. Aquele não é o lugar onde deveríamos encontrar crianças. Lugar de criança é na Escola! 

Por alguns segundos olhei atentamente o garoto maltrapilho, franzino e ávido por algumas moedas, tentando resistir na selva urbana ao qual foi lançado prematuramente e que, como num enredo repetido de um filme trágico, o deixava com pouquíssimas chances de sobrevivência.  Neste momento, coincidentemente, o poeta cantava - “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais...”. Vi o menino travando, na escuridão daquela noite, uma guerra com outras miseráveis crianças para subsistir. E, numa alusão a um dos episódios do National Geographic, o comparei a um filhote de antílope lutando para escapar ao ataque coletivo de leões famintos. Suas chances eram mínimas. Minha aparente alucinação tinha um fundamento. Eu não estava diante de uma savana africana! Eu estava diante de pessoas – reais. Meu corpo estremeceu, um frio incomum e um sentimento tomou conta de mim: tive pena daquele ser. Meus olhos marearam. Por mais que sobreviva à fome ou às doenças que provavelmente enfrentará, outras tantas batalhas ainda estarão por vir. O roteiro das drogas, prostituição e marginalização estarão ladeando a sua trajetória, para que, num momento de fragilidade, seja sucumbido. E nós, cidadãos críticos e pensantes, o que faremos? O que a sociedade espera que surja deste sistema descrito? Uma alma boa e piedosa?As regras convencionadas e as cartas já distribuídas dão conta de que, neste jogo, não haverá vencedores.  Todos serão derrotados. O futuro pode nos reservar, digamos assim, um contato menos tolerante e mais agressivo com os garotos-vítimas desta perversidade imposta em suas infâncias.  

Evidente que muitas pessoas haverão de se posicionar com uma pergunta aparentemente ingênua, mas que traduz a paralisia sufocante que ameaça a zona de conforto de quem não atenta para os menores que estão nas ruas das cidades brasileiras: qual a minha cota de responsabilidade? Eu respondo: diretamente proporcional à sua ignorância ao assunto. Quanto maior o seu desconhecimento e a sua omissão, maior sua parcela de culpa. Evidente que aqui me dirijo às pessoas que tem o poder de interferir ativamente no sistema. Se você é escolarizado, tem acesso à internet, defende seu posicionamento político e escreve sobre tantos temas em redes sociais pode se incluir na lista dos avalistas que podem promover esta discussão em seus círculos de amizades e propor soluções.

Há que se defender um debate agudo e urgente em todas as esferas de poder. O legislativo precisa dotar o Estado de leis modernas e ágeis que interfiram neste processo desde a sua gênese. O judiciário precisa garantir que de fato e de direito seja promovida a justiça com toda a plenitude com que esta palavra soa. E o executivo necessita de ações. Medidas eficazes que modifiquem o panorama cruel que empurra cada vez mais cidadãos à marginalidade. 

A sociedade civil precisa identificar que papel lhe cabe. Se você se escandaliza quando se depara com crianças em situações de risco pelos diversos países do mundo, como o recrutamento de adolescentes para o exército sudanês, o trabalho escravo na China ou as vítimas da AIDS no norte da áfrica, tenha a convicção de que o Brasil possui, resguardada as proporções, uma parcela da sua juventude convivendo com situações absolutamente parecidas. Quem nunca soube de algum adolescente transitando nas favelas cariocas portando um fuzil? Quem nunca ouviu  falar de exploração infantil em carvoarias na Amazônia? Quem não sabe dos inúmeros casos de crianças órfãs portadoras de HIV em nossos hospitais públicos? À bem da verdade, o nosso país repete em seu extenso território grande parte das vicissitudes combatidas pela organização independente e sem fins lucrativos  save the children

Precisamos de uma dose de generosidade para interceder neste processo. Quando olharmos para as crianças por trás da película escura dos vidros dos nossos carros, temos que enxergar aquele problema como também nosso e que, na pior hipótese, pode se tornar uma ameaça real às nossas vidas aparentemente confortáveis de classe média alienada. Longe de querer me interessar por teorias ou fantasias banais como sugere o menestrel, necessitamos “amar e mudar as coisas”, pois nos interessa bem mais.