Salvador, 04 de novembro de 2012
Plena noite de quarta-feira em Salvador, quando parei o
carro frente ao semáforo. Durante o minuto e meio em que fiquei à espera do demorado
sinal verde ao lado do hiperposto, no cruzamento da Avenida ACM, fiquei
observando o vaivém das pessoas naquele trecho movimentado da cidade. Enquanto fitava
atentamente seus percursos e as suas expressões faciais, o som do meu carro
tocava “alucinação” de Belchior. Inevitável a confrontação entre a letra
contida na música - escrita há mais de quarenta anos - e o contexto atualíssimo com
que me deparava naquele exato momento.
“Um preto, um pobre, um estudante e uma mulher sozinha (...)”,
personagens descritos na canção, podiam ser vistos logo ali à minha frente. Enquanto os acordes ainda ecoavam em meus
ouvidos, fui surpreendido, ao olhar pelo retrovisor, por um garoto com pouco
mais de nove anos de idade que exibia freneticamente seu “instrumento de
trabalho”: rodinho limpa para-brisas. Disparou em direção ao vidro traseiro do
meu carro e realizou uma limpeza em exatos vinte segundos, para em seguida se posicionar
frente ao para-brisa dianteiro com o intuito de terminar a tarefa que iniciara
sem a minha anuência e, logo em seguida, cobrar a taxa pela realização do
serviço. Neste momento pude observar a criança em sua plenitude. Eram quase dez
horas da noite e o pequeno trabalhador exibia uns trapos pelo corpo. A sua
magreza e a visível falta de vitaminas em seu corpo lha dava curiosamente o
mesmo tom cinzento com que Belchior descreve a epiderme das pessoas na melodia.
O seu cansaço era visível e a exploração por alguém mais velho era muito óbvia.
Nas redondezas daquele semáforo costumam se reunir outras
tantas crianças com o mesmo perfil e com a intenção de arregimentar grana em
troca do esguicho de uma água de aparência duvidosa e uso do rodo nos vidros dos
automóveis. Não apenas crianças. Adolescentes e adultos usam a mesma estratégia.
É uma mazela preocupante que precisa de urgente intervenção. Para além da tangência
aos campos da injustiça social, educação, segurança pública e desemprego que demarca
o problema desde a sua origem, está ali uma crueldade exposta aos olhos de
qualquer cidadão, ante a presença do Estado que finge não enxergar este impiedoso
ambiente. Aquele não é o lugar onde deveríamos encontrar crianças. Lugar de
criança é na Escola!
Por alguns segundos olhei atentamente o garoto maltrapilho,
franzino e ávido por algumas moedas, tentando resistir na selva urbana ao qual foi
lançado prematuramente e que, como num enredo repetido de um filme trágico, o
deixava com pouquíssimas chances de sobrevivência. Neste momento, coincidentemente, o poeta cantava
- “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com
coisas reais...”. Vi o menino travando, na escuridão daquela noite, uma guerra
com outras miseráveis crianças para subsistir. E, numa alusão a um dos episódios
do National Geographic, o comparei a um filhote de antílope lutando para
escapar ao ataque coletivo de leões famintos. Suas chances eram mínimas. Minha aparente
alucinação tinha um fundamento. Eu não estava diante de uma savana africana! Eu
estava diante de pessoas – reais. Meu corpo estremeceu, um frio incomum e um
sentimento tomou conta de mim: tive pena daquele ser. Meus olhos marearam. Por
mais que sobreviva à fome ou às doenças que provavelmente enfrentará, outras
tantas batalhas ainda estarão por vir. O roteiro das drogas, prostituição e
marginalização estarão ladeando a sua trajetória, para que, num momento de
fragilidade, seja sucumbido. E nós, cidadãos críticos e pensantes, o que
faremos? O que a sociedade espera que surja deste sistema descrito? Uma alma
boa e piedosa?As regras convencionadas e as cartas já distribuídas dão conta de
que, neste jogo, não haverá vencedores. Todos
serão derrotados. O futuro pode nos reservar, digamos assim, um contato menos
tolerante e mais agressivo com os garotos-vítimas desta perversidade imposta em
suas infâncias.
Evidente que muitas pessoas haverão de se posicionar com uma
pergunta aparentemente ingênua, mas que traduz a paralisia sufocante que ameaça
a zona de conforto de quem não atenta para os menores que estão nas ruas das
cidades brasileiras: qual a minha cota de responsabilidade? Eu respondo: diretamente
proporcional à sua ignorância ao assunto. Quanto maior o seu desconhecimento e
a sua omissão, maior sua parcela de culpa. Evidente que aqui me dirijo às
pessoas que tem o poder de interferir ativamente no sistema. Se você é
escolarizado, tem acesso à internet, defende seu posicionamento político e escreve
sobre tantos temas em redes sociais pode se incluir na lista dos avalistas que
podem promover esta discussão em seus círculos de amizades e propor soluções.
Há que se defender um debate agudo e urgente em todas as
esferas de poder. O legislativo precisa dotar o Estado de leis modernas e ágeis
que interfiram neste processo desde a sua gênese. O judiciário precisa garantir
que de fato e de direito seja promovida a justiça com toda a plenitude com que esta
palavra soa. E o executivo necessita de ações. Medidas eficazes que modifiquem
o panorama cruel que empurra cada vez mais cidadãos à marginalidade.
A sociedade civil precisa identificar que papel lhe cabe. Se
você se escandaliza quando se depara com crianças em situações de risco pelos diversos
países do mundo, como o recrutamento de adolescentes para
o exército sudanês, o trabalho escravo na China ou as vítimas da AIDS no norte
da áfrica, tenha a convicção de que o Brasil possui, resguardada as proporções,
uma parcela da sua juventude convivendo com situações absolutamente parecidas.
Quem nunca soube de algum adolescente transitando nas favelas cariocas portando
um fuzil? Quem nunca ouviu falar de exploração
infantil em carvoarias na Amazônia? Quem não sabe dos inúmeros casos de crianças
órfãs portadoras de HIV em nossos hospitais públicos? À bem da verdade, o nosso
país repete em seu extenso território grande parte das vicissitudes combatidas
pela organização independente e sem fins lucrativos save the children.
Precisamos de uma dose de generosidade para interceder neste
processo. Quando olharmos para as crianças por trás da película escura dos
vidros dos nossos carros, temos que enxergar aquele problema como também nosso
e que, na pior hipótese, pode se tornar uma ameaça real às nossas vidas
aparentemente confortáveis de classe média alienada. Longe de querer me interessar por teorias ou fantasias banais
como sugere o menestrel, necessitamos “amar e mudar as coisas”, pois nos
interessa bem mais.
Você é foda. Na minha humilde opinião, esse foi o melhor texto seu que eu já tive a oportunidade de ler. Muito obrigado.
ResponderExcluirPenso o mesmo que você, pois vejo também sempre crianças e adolescentes não só nos sinais, mas também nos ônibus vendendo balas, escovas de dente, e outros produtos. Mas é incrível o "dom" que as pessoas tem de ignorar e levar a vida. É como Adriana Calcanhoto diz em uma de suas músicas "A fome está em toda parte, mas a gente come, levando a vida na arte".
ResponderExcluirEsta situação é lastimável. Me deparo diariamente com crianças, jovens e adultos nas ruas de Salvador medingando e fico chocada. Não vejo como algo normal, mas como uma situação desumana, inconsciente e perversa por parte daqueles que deveria trabalhar em prol da população. No caso das crianças, fico revoltada por entender que elas foram gerados por aqueles que deveria protegê-las, mas que na verdade utiliza de sua inocência para ações ilegais. Como todos dizem: "Lugar de crianças é na escola".E eu me pergunto onde está esta escola?
ResponderExcluirAnilson a temática abordada no texto, como você mesmo falou merece reflexões e discussões por todos aqueles que se sentem responsáveis e que não se ocultam diante das problemáticas vividas por nossas crianças.
Parabéns!
Na canção fala que isso acontece nas grandes cidades só que isso foi em 1976 quando foi lançado o álbum. Infelizmente hoje em dia é muito comum ver em cidades menores cenas como a que foi narrada por você Anilson. Moro em uma cidade com um poco menos de de 127.000 habitantes é comum observar crianças,adultos,idosos e até mesmo animais entregues ao tempo, como preferimos dizer para amenizar o peso da consciência, entregues a Deus.
ResponderExcluirLeio todas as suas crônicas, por várias vezes sentir vontade de comentar algumas só que sou um pouco tímida e demoro algum tempo para organizar meus pensamentos,mas está eu não podia deixar passar em branco, até tentei... Só que este texto ficou gritando em minha cabeça e para acalmar os meus pensamentos eu jogava a culpa nos governantes,na polícia,no papa enfim, a culpa podia ser de todo mundo menos minha. Acredito piamente que os governantes são os que podem resolver esse problema de maneira mais "fácil", sei que sozinho não posso fazer muita coisa, mas a mesma energia que eu gasto mobilizando meu grupo de amigos par fazer um churrasco, organizando uma partida de futebol e até mesmo fazendo um bolão para saber que matou o Max posso fazer alguma coisa boa pelos que sofrem... Será que isso é ALUCINAÇÃO? Acho que não! Não podemos ficar com os olhos vendados, temos que tomar alguma atitude em relação a isso, já que os governantes não podem ou não querem fazer o mínimo que nos doarmos pode fazer a diferença na vida de uma pessoa.
Na verdade, se o problema está correlacionado com cidadania,políticas públicas, humanização.Todas nós estamos inseridas nesta situação. Portanto Emanuele, vivemos uma alucinação coletiva. Pense nisso.
ResponderExcluirPenso muito nisso Geruza, esse texto não saiu da minha cabeça. Penso também que temos que nos curar dessa alucinação coletiva e começarmos um trabalho coletivo em prol dos necessitados.
ResponderExcluirRealmente Emanuele, iniciar um trabalho coletivo em prol dos necessitados é o primeiro passo para uma possível transformação dessas alucinações. Porém, ficamos na dúvida de como iniciar. Será que fará efeito se fizermos a nossa parte? Como será essa parte? É muito complicado, para a realidade da qual vivemos, em uma sociedade que só valoriza aqueles que detém o poder. O sistema nos coloca nessa situação de que não podemos fazer nada, que a realidade esta posta e não há mudanças, mas acredito muito nesta possibilidade de podermos fazer dessa alucinação uma realidade concreta, possível e humana. É através de pessoas como você e do prórpio autor do texto, que por sinal, uma pessoa humana. Podemos iniciar esse trabalho coletivo. Vamos a luta!
ResponderExcluirDifícil né amigo? Ver e não enxergar, ouvir e não escutar, será que é isso que fazemos? Na nossa correria diária parece que ficamos impotentes, mas é esta a programação da "máquina" capitalista. Nos permite um pouco mais e deixa essa sensação de impotência, mas nós podemos sim, pelo amor, pela dor devemos nos unir, nós que nos sensibilizamos e que (con)vivemos com essa realidade é nosso dever modificá-la.
ResponderExcluirMuito boa essa crônica, me senti no trânsito, dentro do carro todo fechado e vendo tudo isso ao meu redor. A descrição e a contextualização foi perfeita.
Beijos