domingo, 18 de novembro de 2012

Somos todos búfalos !











Salvador, 18 de novembro de 2012



Depois de cinco anos voltei a usar aparelho ortodôntico. De modo algum foi por vaidade.  Foi necessidade. Acontece que o tratamento a que me submeti durante sete anos foi prejudicado em virtude da interposição noturna da minha própria língua contra as arcadas dentárias, desarrumando o alinhamento perfeito conseguido pelo meu dentista anterior. Agora, além deste tratamento odontológico, tenho que recorrer às sessões de fonoaudiologia para impedir a batalha noturna travada entre a língua e os dentes. Mas, tornei-me um paciente-paciente!

As dores incômodas provocadas pelas forças dos fios de aço recolocando os meus dentes no lugar são abstraídas em virtude da boa conversa que acontece durante o meu tratamento. Sempre há um bate papo dentro do consultório que costuma ser mais duradouro que as próprias intervenções ortodônticas.

Meu ortodontista, Alexandre Palmeira,  é um sujeito nascido em Remanso, sertão da Bahia. Como tantos outros nordestinos do interior, veio à capital para tornar-se doutor. Estudou em escolas tradicionais da capital baiana até ser aprovado no vestibular da Universidade Federal da Bahia. Formou-se em tempo mínimo e logo se aventurou como empreendedor. Deve ter em torno de quarenta e cinco anos, é casado e pai de uma filha. Instalou seu consultório bem pertinho do bairro que escolheu pra viver: Itaigara. Para ele, qualidade de vida é não enfrentar o caótico trânsito da metrópole diariamente.

Esta semana ele me surpreendeu com uma observação.

- Engraçado o povo de Salvador. Pensa diferente da população de Fortaleza, João Pessoa, Maceió e outras capitais nordestinas. Lá todo mundo adora morar defronte a Orla. Aqui a preferência e a valorização são por avenidas centrais engarrafadas. – Disse-me convicto e ao mesmo tempo me instigando a pensar sobre qual provável fenômeno provoca a divergência de opinião entre nós e as demais cidades litorâneas.  

- Ora, porque a Orla de Salvador é a mais maltratada do mundo. – respondi de bate pronto. Foi uma das respostas que me veio à cabeça naquele momento. O fato é que um conjunto de fatores impõe essa característica à moradia na nossa capital, mas, sua constatação me levou a pensar um pouco mais no assunto. Porque os apartamentos nas Praias de Iracema, Tambaú e Pajuçara são disputados e valem uma fortuna, enquanto que os da Praia da Barra em Salvador só se desvalorizam? Temos um monte de respostas, mas vamos começar por partes.

Primeiro temos que considerar que os adquirentes de imóveis tendem, em qualquer lugar do mundo, a seguir um comportamento idêntico. Tal e qual o efeito manada, existe, neste caso, uma enorme tendência de que devemos fazer ou acreditar em coisas por que outras pessoas fazem ou acreditam no mesmo. Aí a especulação imobiliária deita e rola! Não adianta supor que o seu pensamento crítico te fará escolher um novo bairro como moradia. A articulação engenhosa neste tipo de negócio lhe levará a uma habitação cujo local de implantação será exclusivamente definido por construtoras e incorporadoras ávidas para aumentar seus lucros. E, como búfalos aloprados, nós tenderemos a seguir o amigo, o colega de trabalho ou o familiar na compra do próximo apartamento dos nossos sonhos. Neste aspecto, não se trata de gostar ou não de morar na orla de Salvador e sim de onde são ofertados os imóveis magnificamente decorados cujos panfletos distribuídos em semáforos costumam exibir uma família graciosa e sorridente com o pai carregando um dos filhos nas costas e a mãe segurando outro pela mão. Agora reflita: aquela não é o padrão de família ideal?

Evidente que os maus tratos dados pelo poder público em determinados trechos da orla tem enorme parcela de responsabilidade pela fuga de investimentos privados. Pode-se até imaginar uma ação orquestrada cujo pano de fundo seja a real desvalorização de trechos do solo urbano de Salvador. A especulação imobiliária como atividade aguda do capitalismo possui uma capacidade brilhante de reinventar bairros, inovar na arquitetura, renovar territórios e convencer incautos, pois o pilar de sua sobrevivência é a satisfação do cidadão que tem dinheiro pra gastar. E porque então não se investe em empreendimentos na Orla, já que a maioria das pessoas prefere ver o mar das suas janelas e varandas?

A resposta é muito simples. O plano diretor de desenvolvimento urbano – PDDU - de Salvador possuía restrições de gabarito de altura que impedia que os ganhos dos investidores não fossem potencializados, já que o número de apartamentos num prédio de quinze ou vinte andares é bastante diferente de um edifício com quatro pavimentos. Note-se que em alguns trechos da orla como Armação e Patamares vem consolidando vários empreendimentos de alto padrão. Curiosamente, entre estes dois locais está constituída a faixa da orla soteropolitana flexibilizada em seu gabarito no recentíssimo PDDU, sancionado no governo João Henrique. Será que houve um, digamos assim, interesse público-privado na tal liberação do gabarito?

O melhor, para o mercado de imóveis, ainda está por vir. Minhas projeções dão conta de que a especulação ainda pretende vender muitos imóveis na Paralela e miolo de Salvador, até se chegar à exaustão. Só então, depois disso, este sistema convencerá maciçamente os atuais proprietários de que bom mesmo é viver na orla soteropolitana. Nossos gados com diplomas universitários e com grana pra gastar serão reconduzidos a novas pastagens, a partir das belíssimas peças publicitárias. Não amigo, não se sinta bobo! O jogo é pra valer e não é fácil escapar destas armadilhas.

Tenho um conhecido baiano que mora no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro, num apartamento de dois quartos com menos de setenta metros quadrados e com infraestrutura de lazer bem generosa, cujo valor mensal de aluguel e condomínio corresponde a quatro mil e setecentos reais. Laranjeiras é um bairro central, barulhento e de muito trânsito. É conhecido por abrigar o Palácio do Governo Estadual e a sede do Fluminense. Sua principal via começa no Largo do Machado e termina nas imediações do Túnel Rebouças. A especulação o convencionou um bairro de classe média e classe média alta. Quem conhece o Rio, sabe que do ponto de vista da geografia natural, ali não é exatamente um dos locais mais exuberantes da cidade. E porque o aluguel custa tão caro? Reflita novamente...

Talvez o descuido para com a orla de Salvador tenha exatamente este sentido. Convencer os atuais proprietários dos imóveis em ruínas ao longo da orla a vendê-los por preços desvalorizados, para que no mesmo lugar possa ser erguido um arranha-céu com fachadas estonteantes e varandas ostensivas. É óbvio que o sofrimento para ter o sorriso com meus dentes futuramente alinhados em nada combina com as gargalhadas satíricas da ganância especulativa.

Um comentário:

  1. Anilson, me pipoquei de tanto dar risada ao ler esta parte, está perfeito:
    panfletos distribuídos em semáforos costumam exibir uma família graciosa e sorridente (com os dentes alinhados - observação minha) com o pai carregando um dos filhos nas costas e a mãe segurando outro pela mão. Agora reflita: aquela não é o padrão de família ideal?
    Muito bom, como sempre gostei.
    Beijos.

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