Salvador, 04 de dezembro de 2012
O soteropolitano ou mesmo o turista desavisado que sai do
pelourinho e sobe a ladeira do Carmo em direção ao Bairro do Santo Antônio não
se dá conta da importância cultural das escadarias à sua esquerda que conduzem
até a estreitíssima rua do Passo, onde está frontalmente localizada a também
esquecida Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo. Fechada desde 2008 por
conta da péssima conservação física por qual passa o valoroso monumento
religioso e pela real deterioração dos bens móveis que integram o conjunto.
Aquela igreja é um belíssimo exemplar de arquitetura barroca erguida aqui na Bahia, cuja construção data de 1737. Suas fachadas em estilo rococó sãos expressivas. A planta remonta à solução de corredores laterais disposto por tribunas e sacristia transversal, iguais a outras igrejas baianas da mesma época. Apenas isso, por si só, já seria suficiente pra torná-la uma preciosidade a ser visitada em virtude do seu mérito arquitetônico. Mas, as tais escadarias e a própria igreja ficaram internacionalmente famosas por outro motivo: foi cenário do premiado filme nacional, “O pagador de promessas” – película de Anselmo Duarte, rodado no início da década de sessenta e que, em 1962, deu ao Brasil a sua única Palma de Ouro em Cannes.
Também pode ser surpresa, a um desavisado morador da cidade ou um visitante pouco atento, que nestas mesmas escadarias acontece há quase dez anos, todas as terças-feiras, um show gratuito iniciado às oito da noite e findado por volta das dez. Trata-se do ensaio permanente do cantor e compositor Gerônimo Santana e da Banda Mont Serrat.
Gerônimo é, atualmente, um dos principais vultos da musicalidade baiana. Sua música de maior sucesso, escrita em parceria com Vevé Calazans – É d’Oxum – atravessou os oceanos e é conhecida em diversos países. Sua letra revista por intérpretes famosos do cenário musical brasileiro se reporta ao povo da capital baiana, como se todos nós, soteropolitanos, irradiássemos magia e fôssemos sacerdotes da vaidosa Orixá, que, de acordo com a mística, comanda as águas doces do Universo. Esta música, composta em 1984 e tocada na minissérie da Rede Globo, Tenda dos Milagres, acabou por se tornar quase um hino baiano.
Além da mais famosa música, há no repertório do compositor tantas outras com letras tão intensas e com melodias absolutamente bem resolvidas. Sua compilação musical é imensa e farta, mas não corresponde, de maneira alguma, ao grau de publicidade de sua obra. Gerônimo não é tocado nas rádios baianas e não aparece na imprensa local. Para muitas pessoas daqui é um ilustre desconhecido.
Talvez, por isso mesmo, tenha iniciado com financiamento próprio, no ano de 2003, o "Projeto Gerônimo, Pagador de Promessas", que quase sempre conta com a participação de artistas amigos e convidados. E é ali, exatamente nos pés da escadaria, que o artista arma seu pequeno palco, transformando os pisos posteriores dos degraus numa espécie de arquibancada cuja ascensão possibilita distribuir a plateia de maneira escalonada. Esta conformação aproxima o público em alguns lances e os descola nos patamares existentes. Este improviso é, surpreendentemente, bacana. O show é vibrante! Todos, aparentemente, se divertem: alguns sentados, outros de pé!
Gerônimo nasceu no ano de 1953, em uma das ilhas pertencentes a Salvador - Bom Jesus dos Passos. Naquele território bucólico iniciou e aprimorou sua paixão pela música, aprendendo teoria musical e tocando trombone na Filarmônica. Seu talento o levou a tocar outros instrumentos de sopro, percussivos e de corda, como o violão. Sua identificação com o local de nascimento o aproximou da temática do mar. E a sua crença religiosa o fez expoente de devotas homenagens aos conhecidos Orixás.
Há também desafios notáveis que o próprio artista decide encampar. Um exemplo disso foi musicar o abecedário – uma provocação inconteste – e que, mesmo assim, possibilitou um incrível arranjo e uma batida suave. Há espaço também para, em suas letras, protestar sobre o medo que a nossa polícia provoca nos cidadãos (música: Cidade da Pomba), ou a falta de proteção ao povo sofrido de Salvador, que reside nas encostas, cujos governos incompetentes o considera lixo humano (música: Mameto Calunga).
Em tese, a escolha do dia de terça-feira para a realização do projeto não tem exatamente uma razão específica. Foi escolhido ao acaso, mas tornou-se um dos raros momentos em que moradores e turistas daqui de Salvador tem a oportunidade de adentrar numa performance artística cujos sons primam por harmonias criativas, melodias agradáveis e ritmos dinâmicos. Enfim, ouve-se uma produção de boa qualidade. Evidente que esta mostra, em se tratando de arte, pode não agradar a todos! Entretanto, tenho a convicção de que satisfaz a maioria.
Cerca de dois meses atrás, levei uma turista de Buenos Aires, Valéria Marzullo, para o show nas escadarias. Seu encantamento com o ambiente era, de todo modo, bastante visível. Notei que, aos primeiros acordes tocados, a música lhe contagiou. A surpresa ficou por conta do seu intento em “bailar”. Durante as duas horas do evento, mergulhamos num universo efervescente com a atmosfera da cultura baiana de outrora. Saímos convencidos de que aquela proposição musical era única. Em nossos países, por exemplo, não havia nada para efeito de comparação. Nem em termos de concepção de um espetáculo democrático, nem em termos de imposição de músicas desconhecida das rádios, mas entoadas maciçamente pelo coro presente.
Junto com o cantor, compositor e trombonista tocam mais de uma dezena de músicos daqui da Bahia, que mesmo sem a garantia do retorno financeiro acompanham o líder em todas as suas incursões. É um trabalho praticamente voluntário. A moeda compensatória parece ser o prazer de fazer música e movimentar a noite de terça-feira de milhares de pessoas. Seu público é cativo e que, em sua maioria, conhece as letras por inteiro. Não tenho dúvidas de que o projeto merece um patrocínio público ou privado pelo seu comprometimento na difusão da cultura baiana.
Na terça passada estive mais uma vez no show - é muito comum me virem por lá! - dia em que registrei com o meu celular a fotografia acima e o exato momento em que fiz a reflexão abaixo: enquanto o pensamento do poder público acerca dos incentivos e valorização às atividades culturais em nosso estado não priorizar critérios como a nossa própria história e os patrimônios – físico, artístico e cultural - oriundo dela, o show de Gerônimo está fadado a entrar no mesmo processo de declínio que experimenta a extraordinária igreja que vem se arruinando bem à sua frente.
Realmente, grande Gerônimo...Um show maravilhoso!
ResponderExcluirUm grande valor da cultura baiana
ResponderExcluire um outro grande valor escrevendo esse artigo
Parabéns querido amigo Anilson por nos presentear com belas palavras
Fiquei surpresa ao tomar conhecimento dessa igreja, aliás acredito que muitos baianos não conheçam. Infelizmente sair de Salvador justamente com a idade que me tornaria mais independente e até mesmo mais interessada pela cultura da minha cidade. Hoje a cada visita minha a Salvador conheço um lugar novo me sinto muitas vezes turista dentro da cidade que nasci e vivi por 17 anos. Fico triste em saber que o local esteja entregue ao abandono.
ResponderExcluirQuanto ao Gerônimo, faz tempo que não escutava falar dele, apesar de não ser do meu tempo gosto muito de suas música,esses dias mesmo eu estava escutando "É dÓxum". Pena que artista como Gerônimo, novos baianos e outros "não" façam mais da programação musical das rádios.. E com certeza na minha próxima visita a Salvador esse programa fará parte do meu roteiro.