sábado, 13 de outubro de 2012

A competição




Salvador, 13 de outubro de 2012




Fui professor da Universidade Federal da Bahia nos anos de 2004 e 2005. Lecionava a disciplina Desenho Técnico para os cursos de engenharia. Ministrei paras as turmas daqueles anos, um curso diferenciado, cuja ementa proposta por mim, agrupava as modernas técnicas de representação gráfica, respeitando às teorias da geometria descritiva proposta por Gaspard Monge no século dezoito e a formatação científica que esta disciplina passou a adquirir, no mesmo século, a partir da necessidade de industrialização da sociedade. Inseri o projeto auxiliado por computador – CAD - em minhas aulas e o defendi como ferramenta necessária à sobrevivência dos futuros profissionais que se inclinariam à decisão de projetar.

Os estudantes de engenharia sempre foram considerados os mais aplicados, da área de exatas, naquela universidade. E, durante muito tempo, os de elétrica eram vistos como os mais estudiosos das engenharias. Não sei exatamente se há uma estatística fundamentada para estas informações, mas recordo que nas reuniões do colegiado de curso, em que participava, esta opinião era frequente e unânime entre os meus colegas.

Como, no ano de 2004, fui professor de vários cursos, e tive uma das turmas de engenharia elétrica para lecionar, posso afirmar categoricamente, que ela foi, de fato, a classe mais destacada que passou por mim naquela Universidade. Havia entre eles, aprendizes, uma força motriz inexplicável para a arte de estudar que muito me chamava atenção.

Em diversas oportunidades, me impressionei com o espírito determinado daquelas pessoas. Evidente, que num variado conjunto de quarenta alunos, alguns fossem mais, outros menos aplicados, mas a regra geral era que aqueles jovens tinham um padrão de comportamento responsável e uma busca incessante pelo conhecimento, que além de impressionar, também me entusiasmava. E a aulas fluíam como uma comunicação perfeita entre o orador e os ouvintes: os atores se entendiam perfeitamente.

Neste mesmo ano, também lecionava em duas universidades particulares situadas no município de Lauro de Freitas – professor, no Brasil, tem quase sempre a difícil missão de arregimentar um melhor salário a partir da lotação completa de sua carga horária semanal. Comigo não era diferente. O fato de ser educador em três instituições distintas no mesmo ano letivo, e deparar com turmas formadas por alunos de diversos cursos, me possibilitou identificar com clareza as características existentes entre os grupos para os quais ensinei. Para tranquilizar os mais incautos, afirmo que cada uma destas turmas possuía suas peculiaridades próprias, e eu gostei de ter conhecido todas elas. Entretanto, a ênfase dada em particular a este grupo se deve ao fato do sucesso de aprendizagem alcançado e as destacadas razões que passo a comentar.

Tenho a certeza de que não sou um professor convencional – não quero dizer com isso que sou melhor ou pior que outros – apenas, sou diferente. A impressão que fico a partir do depoimento dos muitos amigos (ex-alunos) que adquiri com ao longo do exercício da minha profissão é que instigo, ainda que de forma não intencional e com certa acuidade, a motivação para o desenvolvimento da  potencial criatividade de cada indivíduo. Acredito ser nato em todas as pessoas. Evidente, que nem todos os alunos despertam para isto, mas grande parte deles corresponde com resultados fantásticos aos estímulos feitos. Na turma em questão a inquietação e a curiosidade eram, absolutamente, exageradas e os resultados impressionantes!

Um detalhe, também me possibilitou traçar comparações. Recordo que ministrava a mesma disciplina em duas das faculdades à época, e fazia questão de resguardar a mesma ementa e, por conseguinte, as mesmas aulas. Não fazia distinção entre alunos das universidades pública ou privada, embora reconheça a existência de diferentes particularidades entre eles. Tratava-os da mesma forma. Lembro também que a grande maioria dos alunos da classe comentada, tiravam notas muito altas, comparadas com os alunos das outras engenharias da mesma faculdade ou das outras escolas em que eu também era educador.

Um fato curioso me fez refletir. Estávamos findando uma das unidades bimestrais e esta classe possuía um aproveitamento médio bem acima dos noventa por cento. Um dos estudantes, bastante educado e muito disciplinado, teria obtido a nota nove vírgula sete. Um pequeno detalhe lhe tirou a nota máxima (dez) que tanto buscava. Aquela havia sido a melhor nota da turma naquela unidade.

No mesmo ano, e em uma das faculdades privadas, realizei um seminário, no turno noturno, com a participação de convidados externos à instituição cujo objetivo era aproximar a academia do mercado de trabalho. Convidei os alunos da classe protagonista, que estudavam pela manhã, a participar. Incentivei-os para que extrapolassem os muros da universidade pública e percebessem a realidade de outra instituição, num fórum de âmbito técnico e científico. Vários deles aceitaram o convite e debateram com os demais participantes sobre projetos em engenharia. O evento foi notável. Como forma de retribuição, resolvi premiar, com meio ponto extra, cada um dos participantes. Lembro que alguns alunos da falada turma saltaram dos nove vírgula cinco para a nota máxima. Vários deles ultrapassaram a nota do prodígio aprendiz da classe. E, aí eu me deparei com um problema:

- Professor, não acho justo que, em virtude de não poder participar do evento, os meus colegas fiquem com a nota maior que a minha - alegou o aluno que até então possuía a maior nota na sala.

Fiquei constrangido explicando que o motivo da pontuação extra não era prejudicar alguém e sim reconhecer quem fizera um esforço extra pra participar do fórum. Eu argumentava que o fato de determinado  estudante ficar com a nota dez não tiraria o brilhantismo dele  ter sido, naquela unidade, o meu melhor aluno. Não o convenci. O debate se estendeu durante quase duas horas. Até que finalmente percebi o que efetivamente estava por trás daquele discurso aparentemente inocente e egoísta. Os alunos das universidades competem entre si durante toda a vida acadêmica. E, ao que tudo indica, naquela classe, a competição era muito mais acirrada.  Qual o significado deste tipo de disputa? Está em jogo, neste processo de formação profissional, a deformação de conceitos básicos de cidadania, de justiça, de convivência harmônica e de urbanidade.

Nunca mais o vi. Não sei qual caminho profissional trilhou. A todos os alunos que estiveram comigo sempre desejei que buscassem o sucesso em suas profissões, mas não esquecessem de forma alguma que a felicidade das pessoas não está vinculada apenas ao desempenho profissional. Conheço pessoas bem sucedidas em suas carreiras que vivem dilemas com a sua própria saúde, conflitos extremos em suas convivências familiares ou desencontrados arranjos em sua vida amorosa. Não estão em paz apenas com os recursos financeiros que possui. Seus desejos vão, para além, disso! Enfim, um espólio milionário, ajuda enormemente, mas não é capaz de comprar as utopias do indivíduo.

2 comentários:

  1. Perfeito. Desde já quero parabenizá-lo pelo Dia do Professor. Que nesta data façamos uma reflexão do que é ser esse profissional nos dias atuais, principalmente em um país que traz a competitividade como argumento para sermos o melhor, mas que não fazem muito no sentido de melhorar os viéis da docencia consequentemente subsídia aos Professores, mas continuemos firmes em nossos objetivos, ser Professor. Parabéns e sucesso!!!!!!!!

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  2. Anilson,

    Pretendia publicar um comentário a sua crônica, mas pela falta de um perfil adequado (conta google ou outra ID) não consegui. Bem, envio, entãom para seu email meu comentário.

    Sua reflexão é muito profícua tendo em conta o cenário da educação brasileira, seja ela formal ou informal. Nunca se falou tanto em educação, da sua importância e até mesmo necessidade, em suas diversas facetas (educação doméstica, educação no trânsito, educação ambiental etc etc etc). Ela é clave para o sucesso daqueles que almejam delinear seu próprio destino, transformando-se. Por outro lado, parece-me termos reduzido a tal “educação” a um conjunto ordenado de conteúdos que, se apreendidos, poderão te levar a um caminho vitorioso. O problema é o significado dessa vitória que não se remete necessariamente a um triunfo sobre si mesmo, ao conhecimento de si, o qual se faz necessário para uma eventual mudança de e na vida. Apesar do grande mote da educação brasileira (educar para a cidadania) estamos mais comprometidos em educar para o mundo... o mundo do trabalho onde impera a seleção natural, como disse certa vez um professor: somente os melhores sobrevivem! Ao invés de ensiná-los a ser gente, estamos ensinando-lhes a serem leões.

    Espero que continue escrevendo e instigando nossa reflexão sobre coisas aparentemente banais, mas que denunciam nossas fragilidades, os flagelos de nossa sociedade.

    Acrescento: devemos sim qualificar profissionais, mas sem esquecer que nosso maior compromisso deve consistir em educar pessoas, em educar "almas" preparando os sujeitos para lidar com a vida. A escola não é não deve ser uma "empresa".

    Abraço.
    Fernanda

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