Salvador, 25 de outubro de 2012
Eram duas horas e quarenta e oito minutos da manhã do último
sábado quando pus os pés em solo tocantinense. O aeroporto de Palmas me pareceu
singelo e com um aspecto de uma construção inaugurada antes do tempo. A
temperatura fria dentro da aeronave contrastou enormemente com o calor
acentuado que costumeiramente faz na capital do Tocantins. Ali estava eu para
mais uma empreitada por um lugarejo no centro-norte brasileiro.
Fui convidado para participar do Congresso Norte Nordeste de
Pesquisa e Inovação, que ocorreu naquela cidade. Minha participação tinha como
finalidade avaliar a estrutura, a logística e os conceitos empregados no evento,
para consubstanciar e dimensionar o próximo Congresso de igual teor, a ser realizado
aqui em Salvador, em novembro do ano que vem.
Tocantins, palavra originária da língua tupi, que significa
bico de tucano, dá nome a uma das vinte e sete unidades federativas do nosso
país – última aprovada – cuja fundação se deu no ano de 1989. Sua criação se deu a partir da divisão do
estado de Goiás que cedeu a porção norte do seu território para o nascimento do
novo estado. Tudo ali é recente. Sua economia gira em torno da exportação de
soja em grãos e carne bovina.
Nos dias que antecedem minhas viagens a lugares desconhecidos,
costumo usar a estratégia de “passear virtualmente” pelos Google Maps e Street
View dos destinos, com a finalidade de tentar me apropriar previamente da
configuração e mobilidade urbana dos locais que futuramente visitarei. A
fotografia aérea de Palmas, pelo Maps, dimensionou, um pouco, a concepção
urbanística projetada e construída no município e me permitiu ter uma noção das
intervenções nos espaços públicos e privados. Nada que represente, de fato, o
que visualmente pude perceber no próprio local. O Street View com suas ótimas
fotografias em trezentos e sessenta graus feitas em diversas capitais pelo
mundo afora ficou devendo este registro da capital tocantinense.
O projeto da cidade foi idealizado por dois arquitetos
brasileiros formados por escolas
inglesas - Walfredo Antunes e Luis Fernando Cruvinel. O partido adotado em
muito se assemelha à concepção modernista empregada em Brasília, mas tal
afirmativa é, veementemente, rechaçada pelos autores. Dois eixões estruturantes
(norte-sul e leste-oeste) foram
implantados no sistema viário daquela capital. Há que se considerar a
generosidade empregada na largura das suas principais avenidas. Isso
possibilita fluência no trânsito e certo conforto para os que dele necessitam. A
escolha do território para implantação da tal cidade se deu em virtude da
topografia e da localização no centro geográfico do estado. O plano urbanístico
idealizado, limitado a leste pela serra do Lajeado e a oeste pelo rio
Tocantins, revela uma divisão ortogonal que incorpora o conceito de quadras
organizadas. Estas são relativamente comparadas com as idealizadas no Distrito
Federal. A exceção fica pela não adoção dos setores urbanos bem definidos e
também a não imposição de gabaritos fixos para altura dos prédios.
Em tese, talvez o conceito de pós-modernidade urbanística
adotado como modelo para as cidades capitalistas do século XIX tenha possibilitado,
em Palmas, a articulação de uma proposta enviesada de moradia, circulação, produção
e consumo numa mesma porção espacial, em oposição às cidades medievais, cuja
produção era feita no campo e o consumo dentro dos muros. Neste aspecto, o que
mais me chamou a atenção foi a ausência de quadras exclusivamente residenciais.
No curto espaço de tempo em que fiquei
por lá, tive a sensação de que basta adquirir um lote em qualquer local e
erguer o que quiser. Parece não haver um ordenamento do uso do solo a partir de
uma orientação criteriosa contida nos instrumentos legais, ou então a
fiscalização é, ainda, ineficaz – pode ser que minha leitura tenha sido
superficial. A repercussão imediata deste tipo de apropriação dos espaços
acarreta em situações pitorescas. Do tipo: a instalação de um barulhento bar ao
lado de uma casa de acolhimento de idosos. Claro que as funções dos dois
equipamentos são bastante distintas, seus públicos alvos diferenciados e a sobrevivência
do segundo em detrimento da permanência do primeiro é, absolutamente,
impossível.
Instalei-me num hotel executivo, situado quase em frente à Praça
dos Girassóis, um dos principais pontos de visitação da cidade. A hospedaria que
conta com uma intrigante arquitetura, cuja circulação é permeada por passarelas
estruturadas em madeira de lei que interligam os ambientes e jardins internos,
aliada ao calor que beirou os quarenta graus, foi um convite para se descartar
qualquer passeio turístico por Palmas. Confesso que passei a maior parte das minhas 36 horas de estadia em
apenas dois lugares que me proporcionava conforto térmico: a sala da
coordenação do evento e o quarto do hotel – ambos possuíam um excelente ar
condicionado que me permitia uma razoável sensação de bem estar. Estive em um dos shoppings da cidade,
localizado a quinhentos metros do hotel, para jantar na noite de sábado. Eram
quase dezenove horas, quando fui caminhando e contemplando uma cidade
recentemente projetada, mas que, notadamente, exibia um vazio importante. Demorei
a perceber qual elemento faltava ao conjunto - outros transeuntes que, assim
como eu, também deveriam estar por ali andando pelo concreto aparente das
calçadas.
Durante o percurso, percebi alguns poucos carros passarem
margeando o passeio em que eu ia. O sistema público dotou o local de iluminação
eficiente, calçamento bem delineado, gramado aparado e avenidas largas e
sinalizadas. Mas, pelo menos naquela noite, faltou ao espaço urbano o elemento primordial:
as pessoas. Não as vi! O que será dos
espaços públicos se neles não estiverem os cidadãos? Que fenômeno impõe aos
tais cidadãos a escolha por não transitar nas vias que lhe foram destinadas?
À primeira vista, as respostas às duas perguntas acima podem
estar relacionadas diretamente à questão da segurança pública, entretanto creio
que não há como elencar apenas este elemento como fator conclusivo. Ao meu ver,
para além deste quesito, outras questões podem ser incorporadas, tais como: o
estímulo a um novo estilo de vida que não nos faça recorrer apenas a locomoção
automotiva, a criação de atrativos culturais que não estejam contidos intra-muros, o incentivo fiscal a lojistas para
que o comércio de rua possa competir com as lojas climatizadas dos shoppings,
ações de caráter permanente de modo a promover a inclusão e mobilidade plena dos
indivíduos, enfim eis algumas formas de revitalizar as ruas centrais das grandes
cidades brasileiras.
Do contrário, continuaremos convivendo com o cenário
inóspito destas ruas, que nem de longe deve se assemelhar com as pranchas
idealizadas por Antunes e Cruvinel, mas que “in loco” revelam a mesma inércia e
apatia das fotografias aéreas do Google Maps.