quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Nosso muro árabe







Salvador, 20 de setembro de 2012



A história da Palestina registra, ao longo de séculos, frequentes diásporas do povo judeu naquele pedaço de terra do tamanho do estado de Sergipe, com aproximadamente 20 mil quilômetros quadrados, situado no Sudeste Asiático e despojado sobre o litoral do mar Mediterrâneo. Em maio de 1948 o povo judeu, com a ajuda dos Estados Unidos, conseguiu instalar o estado de Israel repatriando milhares deles dispostos pelo mundo, numa região predominantemente mulçumana. Israel faz fronteira com países árabes que lhe fazem oposição. Durante os últimos setenta anos, judeus e mulçumanos travam guerras sangrentas ante o argumento do fundamentalismo religioso, do domínio político e da conquista de terras. Milhares de pessoas já morreram vítimas destas batalhas desumanas. Jerusalém fica no coração do território conflitante e é alvo de posse dos dois povos. 

Israel cresce sua economia ano a ano - capitaneada por altos investimentos em educação - com índices bem superiores a diversos países desenvolvidos, motivo que impressiona estudiosos em virtude das guerras enfrentadas, da sua localização geográfica e de sua curta história como nação.  Em situação econômica completamente oposta se encontram os países de origem mulçumana ao redor da nação judia. A pobreza e a ignorância imperam nestes países - os índices de analfabetismo são estratosféricos. Uma das soluções encontradas para segregação de judeus e palestinos foi a criação de um muro de segurança, em alvenaria, que separa o estado de Israel da Cisjordânia.  Este paredão sob o olhar da cultura ocidental é emblemático e representa um dos registros mais cruéis da intolerância humana.

No domingo, imediatamente posterior ao aniversário de dois anos de Guilherme, filho de um casal de amigos que fui padrinho de casamento, resolvi lhes fazer uma visita. Cheguei pela manhã, não muito cedo, já que a rotina de ida à casa dos amigos aqui na Bahia nos dá a experiência exata para escolha do horário e não tornar a estadia inconveniente. Meus amigos moram em uma das torres de um dos condomínios recentemente entregues no empreendimento Alphaville na Avenida Paralela. Com a tradicional e afetiva receptividade da família e um sorriso estampado de Guilherme fui recebido no belíssimo apartamento deles. A conversa girou em torno de vários assuntos e culminou com a empolgação da nova moradia. Mudaram de um apartamento localizado num bairro tradicional da cidade e passaram a residir numa propriedade implantada em um “novo” bairro de Salvador que oferece os mais variados leques de lazer e serviços.

Meus amigos se dispuseram a mostrar as opções oferecidas aos moradores e seus convidados (dentro dos limites do regimento, é óbvio!). Descemos todos ao lobby da sua torre – o condomínio possui três torres – e fomos passeando pelas dependências comuns, reconhecendo os espaços generosos disponibilizados: quadras de esportes, piscinas adulto e infantil, academia de musculação e ginástica, estúdio de pilates, salão de jogos, cinema, boate, salão de festas, espaço gourmet e tantos outros, que aqui não conseguirei dizer, já que precisaria de um pouco mais de memória para relembrar o que vi. Seu condomínio é mais um dos grandes empreendimentos de Salvador que tenta convencer o cliente a partir da sólida proposta de passatempo para as famílias, além das apostas nos projetos para contemplar a estética, o conforto e a funcionalidade das habitações.

Inevitavelmente esta nova proposta de moradia acaba por fazer enorme sucesso com as classes mais opulentas dos grandes centros urbanos do país. Com forte apelo na segurança dos condôminos, já que a possibilidade de ser importunada pela marginália que toma conta das cidades é quase nula, os empreendimentos vão se proliferando pelos – ainda - viáveis terrenos disponibilizados pela especulação imobiliária na cidade de Salvador. O principal alvo para fincar os condomínios na cidade ainda é o que resta de mata atlântica ao longo da Avenida Paralela – uma das vias mais movimentadas da cidade e que chega a escoar mais de duzentos mil veículos por dia.

Vejo com preocupação o sectarismo da cidade a partir de movimentos como este. Evidente que nenhum habitante gozando de plena saúde mental vai optar por outra vivenda menos glamourosa tendo a condição financeira de habitar em um condomínio que oferece tantas comodidades. Entretanto, há que se discutir que formaremos empreendimentos-fortalezas, desmembrados dos demais bairros que compõe a nossa cidade. Haveremos de não nos (re) conhecermos mais! O espaço público outrora componente fundamental para o exercício pleno da cidadania se tornará o reduto de quem vive à margem da sociedade. Quem ousará namorar nas praças públicas das metrópoles? Quem convidará o amigo para um passeio pelo centro antigo das grandes cidades?

A nossa cidade vive, em particular, um abandono genuíno  por conta  das catastróficas gestões públicas que se apoderou da prefeitura municipal nas últimas décadas. Alie-se a isso o fato de que as classes alta e média soteropolitanas têm optado por moradias que adotam exclusivamente a porta do condomínio pra dentro como algo do seu interesse efetivo. Quase nenhum destes se importa com o restante da cidade. Nós nos preocupamos em pagar as taxas de condomínio do prédio que moramos e reclamamos da taxa de IPTU da nossa cidade – às vezes esta última corresponde anualmente ao valor da mensalidade da primeira! E o resultado disso é, inevitavelmente, a criação de “ilhas de moradia” cercadas por fragmentos de uma cidade pobre, insegura e feia.

Quando a sociedade culta e/ou abastada da nossa cidade se der conta, haveremos de garimpar a fachada rococó da Igreja do Bonfim escondida por trás de uma montanha de lixo, apreciar o estilo art déco do elevador Lacerda com seus acessos cercados de pedintes sujos e famintos e contemplar a arquitetura militar do forte do Santo Antônio da Barra (farol) sendo ladeado de dejetos-humanos e humanos-dejetos. Para quem pensa que este cenário está distante, convido-os a um passeio pelos tais locais turísticos da outrora empolgante e acolhedora cidade de Salvador.

A que se reduzirão os logradouros e espaços públicos antes dispostos incontestes aos seus cidadãos? Será absolutamente factível encontrarmos uma cidade paradoxalmente contraditória. Dentro dos condomínios de luxo, conviveremos com a harmonia pacífica e  charmosa dos moradores, ostentadas pelas mais variadas opções de bem-estar que o mundo moderno requer. Do lado de fora dos condomínios, uma cidade desigual, impactante e bárbara com confrontos reais e violentos exibidos nos programas vespertinos de tevê. Curiosamente, o simbolismo da separação destes universos díspares é a construção de um muro de segurança. Um muro de alvenaria tão singelo e frágil, mas que assim como o outro lá na Palestina, separa os judeus e muçulmanos que vivem em nós.


2 comentários:

  1. Retrato fiel da nossa realidade atual, sem mais. Parabéns!

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  2. " Quem ousará namorar nas praças públicas das metrópoles? Quem convidará o amigo para um passeio pelo centro antigo das grandes cidades?"

    Belos questionamentos...mas de fato, sua percepção é uma virtude de poucos. E quando, por força da realidade, as pessoas passarem a enxergar da forma que você já enxerga, será muito tarde diante do caos que criamos para nós.

    Abraço.

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