Salvador, 20 de setembro de 2012
“Cidade avançada não é aquela onde os pobres andam de carro, mas sim aquela onde os ricos andam no transporte público”. Com esta expressão rondando a minha mente, me debrucei sobre a obra e o autor da intrigante frase acima.
Enrique Peñalosa é urbanista e economista, foi prefeito da cidade de Bogotá na Colômbia, entre os anos de 1998 e 2001. Pesquisador agudo e consultor mundial em planejamento urbano. Peñalosa se dedica a apresentar soluções visando cidades sustentáveis, tendo como baliza a qualidade de vida e mobilidade dos cidadãos. Entre os seus feitos está a criação de mais de trezentos quilômetros de ciclovias na cidade que administrou, a transformação de uma enorme área degradada e ocupada por usuários e traficantes de crack, num visitado parque público e a adoção dos sistemas de ônibus rápidos em corredores exclusivos – espécie de BRT (Bus Rapid Transit). Apesar disso, não se pode classificar Bogotá como referência urbanística em virtude dos outros tantos problemas. Entretanto, há que se considerar que investimentos públicos deste porte e com esta finalidade, em países pobres como o nosso, é, em tempos atuais, quase uma raridade.
Duas experiências vividas por mim recentemente, me deixaram com este tema - mobilidade urbana - na cabeça. A primeira, no último dia seis, quinta-feira às dezoito horas, véspera do feriado prolongado, optei por dirigir numa via que não costumo utilizar com frequência. Escolhi a cidade baixa como acesso para o Barbalho, já que saía do bairro do Canela. Da saída do Comércio, no início da Avenida Jequitaia, até o acesso à Ladeira da Água Brusca levei aproximadamente sessenta minutos trafegando num engarrafamento dantesco cujo trecho possui pouco mais de novecentos metros. Não precisa ser gênio para chegar à conclusão de que a velocidade média foi de apenas um quilômetro por hora. Conheço pessoas idosas que caminham numa velocidade cinco vezes maior que a desenvolvida por mim no volante. Senti-me um trouxa dentro do carro, parado e observando as pessoas caminharem lá fora. Qual o sentido do alto investimento que fazemos na aquisição de um veículo e nos inúmeros itens que o acompanha (seguros, impostos, combustíveis, manutenções, acessórios) para ficar a maior parte do tempo num tormento cruel preso no congestionamento? Vi-me, de novo, como num castigo infantil, sendo obrigado a ficar sentado num sofá depois das traquinagens de criança. Não havia saída. A única coisa a fazer era esperar...
A segunda, no mês passado, num final de semana no Rio de Janeiro, quando utilizei o ônibus articulado do corredor expresso do sistema Transoeste (BRT) - recentemente inaugurado - para ir à residência de um casal de amigos publicitários: ele, baiano-interiorano e ela, carioca-cosmopolita (assim como a teoria Yin/Yang, suas polaridades se complementam). Fui do Terminal da Alvorada, na Barra da Tijuca até a estação Glaucio Gil, no Recreio dos Bandeirantes, em sete minutos. Segundo meus anfitriões na cidade maravilhosa, este percurso costuma durar o triplo do tempo numa viagem em ônibus convencional. Aprovei o sistema como usuário de fim de semana. Não tenho como mensurar sua funcionalidade e eficiência em horários de pico e nos dias úteis. É preciso dar o tempo suficiente para uma avaliação mais concreta. Há, por enquanto, um sentimento difundido de que os usuários de transporte coletivo da Zona Oeste do Rio foram enormemente beneficiados. Será?
Qual a relação entre estas duas experiências que vivi? Evidente que ambas apontam qual o horizonte que vislumbramos para a mobilidade urbana de Salvador. Quais as alternativas de intervenção para que não sejamos vítimas de um caos generalizado no trânsito que nos impeça cotidianamente de chegar ao trabalho ou faculdade dentro de um limite de tolerância aceitável? Será que não já vivenciamos isto?
Do ponto de vista urbanístico, as cidades brasileiras precisam enxergar com veemência as causas e consequências das apropriações e disputas das pessoas e veículos que integram a acessibilidade e mobilidade dentro dos cotornos viários do território urbano: condutores e passageiros de automóveis particulares, de ônibus, de metrôs, de trens, de táxis, de motocicletas, de veículos especiais, além de pedestres e ciclistas, necessitam de projetos e obras audaciosos que interfiram com exatidão nos Planos Diretores municipais. Para, além disso, avançar em proposições que desestimulem o uso frequente de veículos motorizados. A lógica de uma vida mais saudável prega que caminhadas e ciclismo são ótimos exercícios para a saúde da população, além de contribuir com a sustentabilidade ambiental. Então por que não se incentivar com a devida ênfase estas atividades físicas? As campanhas são, quase sempre, moderadas e sazonais.
Sancionada em três de janeiro deste ano, a Política Nacional de Mobilidade Urbana não se reporta ao pedestre. Parece não haver uma atenção destinada às pessoas que optam por caminhar para chegar ao seu destino. Aqui em Salvador, há registros de pessoas que andam por mais de dez quilômetros diariamente pra se chegar e/ou voltar do trabalho com o intuito de economizar a grana da passagem. Neste aspecto, o principal feito das administrações municipais para “ajudar” os pedestres seria a manutenção e a integridade das calçadas ao longo das ruas. Óbvio que não é o caso da nossa cidade!
Salvador possui menos de três milhões de habitantes e uma malha cicloviária de aproximadamente vinte quilômetros, que contorna, prioritariamente, sua orla marítima oceânica e alguns parques públicos. Para efeito de comparação, Buenos Aires, com quase a mesma população, possui noventa quilômetros de ciclovias e um sistema integrado com 22 estações e 850 bicicletas gratuitas. Claro que também não temos o que comemorar!
Em relação aos transportes de massa de Salvador, até recentemente estávamos na dúvida se enveredaríamos pelo metrô ou BRT rasgando o canteiro central da Avenida Paralela para implantação de um deles. Afirma-se que estudos multidisciplinares foram realizados com o intuito de se investir no modelo apropriado. Neste aspecto, desconfio que o sistema vitorioso - metrô sobre superfície - foi selecionado muito menos pelos impactos ambientais, econômicos e sociais da sua implantação do que pelos lobbies defendidos pelas organizações sanguessugas da iniciativa privada que proliferam no habitat público. A julgar pelo tempo e investimento dispostos nos seis quilômetros da malha metroviária ainda não concluída daqui de Salvador, cuja intervenção possui doze anos de obra e gastos na ordem de mais de um bilhão de reais, não sei se estarei vivo para utilizar os bilhetes de passagem nas estações do Imbuí e Pituaçu.
A mobilidade urbana de Salvador é um tema sério e precisa do envolvimento de técnicos qualificados que trabalhem ininterruptamente para que a cidade adquira condições de trafegabilidade. Por enquanto ficaremos apenas com a utopia. Com a cidade imaginária. Aquela idealizada por Peñalosa, que nos faz crer ser possível deixar nossos trambolhos poluidores de uma ou duas toneladas na garagem de casa, para contemplar a cidade a pé ou de bicicleta.