Salvador, 30 de agosto de 2012
O ex-síndico do meu prédio é um senhor totalmente grisalho com
aproximadamente sessenta e poucos anos. Mora com a esposa desde a entrega do
condomínio pela construtora há seis anos. Não o conheço bem, mas percebo que
ele desfruta de uma enorme empatia com a maioria dos moradores. Durante os seus
dois anos de mandato, enquanto morador do prédio, pude notar seu enorme esforço
para a realização de algumas reformas no condomínio. Das conversas que tive com
ele percebi seu interesse profissional pela construção civil apesar da sua
provável formação ser na área de administração de empresas.
Sua euforia pelas realizações era comovente. Suas ideias
eram perfeitas. Seus planos para
execução eram divulgados. Apesar disso, as obras realizadas sob sua tutela, do
ponto de vista técnico, são um fiasco. À César o que é de César: qual a culpa
de um síndico quanto à qualidade das obras de um condomínio? Nenhuma. Basta ele
reconhecer a sua limitação – ou cegueira - frente a um setor que requer
competência para decisões difíceis e escolhas apropriadas. O suficiente para
reduzir estes problemas ou mesmo diminui-los seria a decisão de contratar um técnico
da área para encampar a tarefa de planejar passo-a-passo as obras de engenharia
do edifício. Tudo seria melhor se síndicos de todo o mundo não decidissem por
tratar uma obra de espectro coletivo como se fosse apenas do seu próprio interesse.
No caso particular do meu condomínio, confesso às vezes ter
sido informado da intencionalidade quanto aos seus almejados objetivos, mas não
ter o devido tempo para aconselhá-lo ou mesmo debruçar-me na perspectiva de realizar
um cuidadoso plano para as intervenções que se realizariam. Quando dava por
mim, lá estava a obra de aspecto monumental estampada com visíveis defeitos e o
emprego de materiais de qualidade duvidosa.
Há uma enorme relação entre o que acontece na escala micro
do meu prédio e as grandes obras públicas brasileiras. Estas têm sido uma
enorme dor de cabeça para a sociedade brasileira. Seus problemas começam nas
famosas falhas de projetos de engenharia – as vezes identificadas por órgãos de Controle muitos
anos depois - e terminam nos inúmeros entraves jurídicos que impedem o efetivo
término das obras: a lei “xis” em consonância com o decreto “ene” sob o amparo
do acórdão “zê” impede a continuidade deste contrato – dispara o setor jurídico
das repartições pelo Brasil afora.
A Lei 8666, sancionada no ano de 1993, foi construída num
esforço coletivo por congressistas com o auxílio de diversos especialistas,
sobretudo advogados. Sua idealização é
inconteste e o texto submetido ao então presidente Itamar Franco parecia por
fim aos problemas das contratações do serviço público federal. Acontece que,
com quase vinte anos de vigência, as instituições que a utilizam têm percebido
na prática uma Lei absolutamente confusa e que engessa sobremaneira este setor.
Levei cinco anos
aprendendo como estudante da graduação as diferenças entre um projeto básico e
executivo de engenharia. Aprendi também que sob a ótica das faculdades
politécnicas uma obra ou serviço de engenharia se constituem numa mesma coisa.
Contraditoriamente, ao me deparar com a tal Lei, percebi que as definições para
projeto básico e projeto executivo são absolutamente ininteligíveis. Fui convencido (forçadamente) que obras de
engenharia e serviços de engenharia devem
ter empregos distintos nas licitações e o pior, seu uso deve ser amparado na
experiência e vontade de cada agente público. Está aí a perturbação. Até hoje nenhuma interpretação jurisprudencial,
administrativa ou doutrinária da possível diferença entre os termos, permitiu-nos
chegar a uma conclusão definitiva. O que se vê é uma proliferação de cursos,
palestras, fóruns e congressos sobre o tema ministrados por astutos advogados
tentando impor sua própria doutrina. Às vezes penso que as nossas leis são
redigidas de tal forma a se perpetuar as dúvidas e as controvérsias.
Depois de vencidas as etapas legais, os órgãos públicos têm
um enorme problema para concretizar: contratar com qualidade os projetos
básicos e executivos de engenharia. Primeiro porque, há uma máxima generalizada
de que projetar em nosso país é uma coisa absolutamente desnecessária. Na área de engenharia não se dá a devida
importância à arte de projetar. A
maioria das pessoas entende que os percentuais gastos com os projetos de uma
obra são supérfluos. A média de cinco por cento do valor total da obra costuma
ser um enorme ponto de divergência entre clientes e profissionais. Já ouvi o
relato de que um cliente suplicou de joelhos para se reduzir à metade os honorários
cobrados pelo projeto arquitetônico de sua residência. Também não foi surpresa
saber que este mesmo cliente deu às suas esquadrias – item que costuma
representar algo em torno de 10% do
total gasto na obra – a prioridade e relevância renegada a mais importante
etapa do seu empreendimento: seu próprio projeto.
As empresas e os profissionais de engenharia qualificados,
porém desiludidos com o prestígio dado ao ramo, costumam migrar pra outros
segmentos. E é um tal de escritório de engenharia devolvendo aos clientes - na
mesma intensidade de preponderância com que são remunerados – representações
gráficas improvisadas e formatadas em
Autocad intituladas “Projeto de Arquitetura e Engenharia”.
No serviço público e com a Lei de licitações isso tudo fica
pior. A administração é obrigada a contratar, dentre as empresas que prestam
serviços, aquela que oferece o menor preço. O resultado disso não precisa nem
comentar. O que tem de projeto
complementar que não se alinha com a diretriz do projeto arquitetônico não está
no gibi.
Na prática e por razões óbvias as empresas aptas a realizar
a etapa construtiva da obra também não
são lá afinadas com as disciplinas acadêmicas voltadas para projeto e
planejamento. E novamente, sendo contratadas as de menor preço, tende a ser um Deus-nos-acuda nos canteiros de obras
brasileiros, vez que os profissionais de construção sequer entendem os
armengues vindos dos escritórios. E tome-lhe uma centena de problemas que
advirão dessa comunicação truncada. Os muitos aditivos de obra ou serviço de
engenharia (como prevê o sistema) são justificados exatamente por conta dessa
deficiência identificada em quase todos os processos licitatórios dos órgãos da
administração pública. Agora pense nisso numa escala macro: em obras metroviárias,
de implantação de usinas, de ferrovias e estradas. É uma tragédia anunciada. Um
estorvo para os bolsos dos contribuintes.
Talvez a opção do meu vizinho por não contratar um perito
quando da necessidade de realizar intervenções em nosso prédio paire
explicitamente na dúvida entre a competência dos especialistas, o investimento
em algo prescindível ou o provável desperdício das taxas de condomínio.