Salvador, 23 de dezembro de 2012
A Avenida Anhanguera é uma das principais vias públicas de
Goiânia. É extensa e parece idealizada para ser a mais importante via de
comércio central da capital de Goiás. Sua implantação foi realizada a partir da
importante e já existente rodovia federal - BR 060, que atravessa a cidade de
leste a oeste. Inseridos no eixo desta avenida estão corredores exclusivos de
ônibus que facilitam o escoamento dos usuários de transporte público. Em dias
úteis, a movimentação de veículos e pessoas ali é, naturalmente, intensa e conflitante.
Já passava das 19 horas da quarta-feira, dia 13 de dezembro
passado, quando eu resolvi caminhar por esta avenida, saindo do shopping
Bananas onde jantei, em retorno ao hotel no setor oeste, onde me hospedei. O
fato de Goiás encontrar-se em horário de verão e o céu ainda claro permitiu que
eu realizasse uma leitura urbana no trajeto em que percorria e apropriar-me um
pouco do espaço construído ao redor. Ali, os raios solares remanescentes incidiam
sobre os prédios e casarões, realçando
os tons e texturas existentes nas fachadas com a amena claridade do final de tarde dos
últimos dias de primavera. O término do expediente de algumas lojas já fechadas contrapunha
com muitas outras ainda em funcionamento. Isto, de algum modo, proporcionava
uma atípica atmosfera de centro comercial e financeiro – com alguns clientes em
busca de suas últimas compras e outros ávidos para fugir do território deserto
que em poucos instantes se transformaria o local. Este cenário dava uma curiosa conotação
meio a meio - comércio e feriado – àquela zona de negócios.
Eis que exatamente na intercessão dessa via com a Avenida
Tocantins surge à minha frente, imponente e estiloso o prédio em arquitetura
art déco que abriga o Teatro Goiânia. Por alguns minutos fiquei a observar a sua
interessante volumetria que nos remonta a um enorme transatlântico (inerte num
porto!). Ative-me às suas janelas em escotilhas e a sua indecifrável cor - original
de quando o prédio foi erguido em 1942 - resgatada num trabalho minucioso de restauro
que durou cerca de dois anos.
Curiosamente, às portas do prédio via-se um público eclético
formado por jovens aparentemente universitários, casais bem vestidos de meia
idade, idosos sorridentes e artistas de várias tribos formavam grupos distintos
que se distraiam em pequenos burburinhos cuja aglomeração coletiva transformava
o descontraído bate papo num ruído intenso. Aquela perspectiva – do local e das
pessoas - de algum modo me remetia à lembrança de algo que pareceu distante na
capital em que moro: o público presente ia assistir a um drama teatral.
Atravessei a rua e fui me informar. Às oito horas iniciaria a
montagem “O Anjo Negro” com grande e destacado elenco, cuja imprensa local –
fui saber dias depois – vinha rasgando elogios ao trabalho. O espetáculo é baseado na obra escrita por
Nelson Rodrigues em 1946. O texto discute
o preconceito racial e os conflitos domésticos. O ator principal incorpora um
médico negro de grande prestígio que não aceita sua condição racial e é casado
com uma mulher branca com quem tenta ter filhos.
Ao preço módico de “cinco reais” adentrei o teatro com a
mesma expectativa de quem faz turismo de passeio e visita ambientes incluídos
no roteiro de viagens. Meu principal objetivo era ver o interior do tablado e
“de quebra” assistir a um enredo do pornográfico autor. Minha grata surpresa se
deu mais pelo espetáculo do que pela infraestrutura em si. Talvez o fato de limitar-me
a conhecer apenas a área de plateia e do palco tenha contido meu entusiasmo com
a arquitetura. Durante as quase duas horas de duração do evento, me entreti com
os personagens, com o talento dos jovens atores e com o cenário criativo,
apesar de simples e notadamente barato.
Evidente que comparei com a situação de Salvador. E esta
comparação me levou à inveja. A cena teatral em nossa cidade na maioria das
vezes em que faz sucesso traz como tema o besteirol e/ou o texto de linguagem
vulgar. Por que é difícil uma montagem com elenco baiano fazer sucesso com um
texto dramático? Por que quase todos nossos estrondosos sucessos teatrais
“exportados” para os outros estados são comédias de fácil entendimento? Talvez
a minha incômoda resposta para isto nos leve a um debate intenso cujos
“especialistas” da área se inclinarão à oposição. Creio que este é mais um
legado deixado pelos nossos precários investimentos em educação. O que isto tem
a ver?
Educação sim, meus amigos! Pois é. Um texto de mediana
compreensão, explorado em palavrões e gírias soteropolitanas em que o elenco
interage e ridiculariza pessoas do público é bem mais fadado ao sucesso - aqui
na Bahia - do que um diálogo encenado e baseado nas obras de Shakespeare ou Dostoiévski.
Semana passada, o prefeito eleito de Salvador – ACM Neto –
anunciou a criação da Secretaria Municipal do
Desenvolvimento, Turismo e Cultura. Existe uma movimentação de
setores culturais da nossa cidade que
são exponencialmente contra a fusão das pastas de turismo e cultura. Exatamente
porque entendem, e é bastante salutar este pensamento, que as nossas políticas
de desenvolvimento cultural estejam amealhadas a se transformar num balcão
mercadológico que vise apenas lotar nossos hotéis e restaurantes com turistas
ávidos pelos eventos de natureza carnavalesca que acontecem em Salvador durante
todo o ano. E obviamente as tantas outras produções dos movimentos culturais da
cidade escoem pelo ralo.
Talvez seja por isso mesmo que muitos intelectuais e
artistas – no sentido mais pleno da palavra: atores, cineastas, pintores, escritores,
dançarinos e tantos outros – tenham reagido com veemência ao anúncio de um
segundo carnaval em Salvador no ano de 2014 e o próximo alcaide ladeado de
cantores conhecidos da axé-music, mas que são - assim como ele próprio, ACM
Neto - empresários do carnaval soteropolitano. Espero que não seja mais investimentos no
mesmo! ou para os mesmos!
É cedo para traçar quais rumos, em termos culturais, a
cidade de Salvador deverá seguir nos próximos quatro anos, pois ainda assombra nos cidadãos soteropolitanos o
desmando, a ausência e a flagrante incompetência do atual gestor da cidade,
cujo dia de saída da prefeitura – dia
primeiro de janeiro de 2013 – é mais esperado e provavelmente será mais
comemorado que o próprio ano novo (pelo menos para os que moram aqui e sofrem
com os percalços de uma metrópole completamente abandonada). Naturalmente,
espera-se que ACM Neto redobre sua atenção para os setores culturais da cidade (os
ativos e os hibernados) e convirja para esta pasta o entusiasmo que lhe é
necessário.
Talvez a instalação de um Conselho Municipal de Cultura
forte e atuante, cuja participação de membros indicados e eleitos pela
sociedade civil organizada possa dar conta de contribuir com a tarefa de
soerguer este esquecido setor. Goiânia, nem de longe, pode ser comparada à
nossa cidade em termos de tradição na garimpagem de destacados artistas locais
ou expressivos movimentos culturais, mas ensina a Salvador (com maestria) o
trato que deve ser dado aos seus patrimônios.